Ofélia Ramos, a rainha das
noites caboverdianas do Mindelo, morreu ontem, dia 23 de Maio
Mindelo, “terra de B.Leza e de
Selibana” (Jotamont)está de luto. Poderíamos , sem medo de desmentido,
acrescentar também o nome de « terra de Ofélia », crioula bonita
e amada pelo povo das Ilhas e costas que encantou as noites de lua cheia do
Mindelo com as suas célebres noites caboverdianas com Cesária, Fantcha,
Malaquias, Canhota, Chico Serra, Manecas Matos, Djosinha de Bernarda, Luis
Morais, Frank Cavaquinho, Manuel d'Novas, sob o olhar atento dos poetas e
compositores nacionais e de emigrantes ávidos de matar saudades da terra
crioula e da sua cultura...
Uma mulher da diáspora
caboverdiana que, após longa luta no estrangeiro, regressou à sua terra para
participar no seu desenvolvimento económico e cultural. Ofélia, proprietária do
Bar Calipso em Dakar e Mindelo, viveu desde a infância ligada à música. O tio
Hilário, autor da morna Odji Magoado e pai do Ildo Ramos, guitarrista
(este muito ligado ao Ti Goy no Lombo), acompanhou B.leza, na sua
digressão musical a Portugal, em 1945, ao lado de Tchuff e Eddy Moreno. O irmão
Djosinha Ramos, futebolista no Grémio recreativo Castilho e um dos maiores
guitarristas que passou por Dacar, onde faleceu, também marcou a história
musical caboverdiana. A irmã Alda é também uma figura conhecida em Mindelo e na
diáspora caboverdiana. Ofélia e os irmãos emigraram para o Senegal nos meados
dos anos cinquenta, onde, a punho do seu trabalho, abriu um
bar-restaurante que acolhia os patrícios recém-chegados com a música
caboverdiana a animar o ambiente.
Ela nasceu e cresceu em Chã de
Cemitério, onde o respeito pelas pessoas mais velhas era sagrado. O Castilho
era o club de futebol da zona e ali se praticava o ténis, o basquetebol e também
o teatro com o Valdemar Pereira, Germano Gomes e outros. A sua família era
muito solidária e em Dacar Ofélia nunca se esqueceu de nenhum sobrinho ou algum
parente, enviando-lhes sempre as encomendas quando aparecia um barco com
destino a São Vicente. Coração de rola a mais sentida (Januario Leite) sempre
tinha um sorriso franco e uma alegria extasiante para receber os amigos e
clientes .
Hoje, poucos estudiosos e
interessados na história da nossa honrosa emigração se debruçam sobre o papel
importante dos emigrantes no Senegal, onde a mulher caboverdiana em especial, a
primeira africana a emigrar livre seja para as Américas ou para o Senegal, teve
um papel determinante na solidariedade para com o povo das ilhas. Essa
emigração, que começou no século XIX, foi interrompida em 1902 pelo governo
colonial português, com o fim de beneficiar os roceiros de São Tomé e Príncipe.
Para isso, foi imposta a obrigatoriedade de se possuir um passaporte para
viajar para o Senegal, onde a mão de obra caboverdiana era preferida por ser o
caboverdiano o único africano da África Ocidental a trabalhar a
pedra. Esta decisão foi combatida heroicamente por Eugénio Tavares e Sena
Barcelos em 1902 e, mais tarde, a partir de 1911 no jornal Voz de Cabo Verde,
por Eugénio Tavares, Abílio Monteiro de Macedo e Pedro Monteiro Cardoso. Quando
“se fechou as portas à nossa expansão” (Jorge Barbosa) para a América em 1924,
foi graças aos nossos heróicos capitães de ilhas e costas, como Alberto e
Crisanto do navio Novas d'Alegria ( desculpem-me por não me lembrar de outros
nomes),que do Senegal chegava quase tudo para a sobrevivência do povo das
ilhas.
Face ao abandono do Porto
Grande, à repressão política nas empresas e à censura colonial, emigrar
clandestinamente para Dacar nos anos quarenta e cinquenta era a única
resposta política ao sistema colonial português. Dacar era a única alternativa
para se evitar o longo calvário das roças de São Tomé. E era clandestinamente
que homens e mulheres partiam, dos portos e burgos do litoral de São Vicente,
como Calhau, São Pedro e Palha Carga, para Dacar em navios como Santa Rita,
Santa Luzia, Novas de Alegria, Ernestina, Ildut e outros
A emigração nunca foi um acto de evasão ou
abandono. Ela foi a estratégia pensada pelo povo das ilhas para arrancar a
nossa terra-mãe das garras das secas e fomes e da colonização. Tanto
Campinas, emigrante na Argentina e o herói do romance Famintos de Luís Romano,
assim como José de Lima, emigrante nos Estados Unidos e o protagonista do
romance Chiquinho de Baltasar Lopes, tiveram de emigrar para se prepararem para
o combate libertador da sociedade caboverdiana.
A abertura do caminho marítimo
para a Holanda, que pôs definitivamente termo ao caminho de São Tomé e abriu
novas perspectivas para o desenvolvimento de Cabo Verde, veio diminuir a
importância do Senegal na vida económica e cultural de Cabo Verde. Não
obstante, nunca é demais lembrar que não se deve ignorar o grande contributo
dos emigrantes caboverdianos de Dacar de onde, a partir dos anos sessenta,
começaram também a emigrar para a França, Holanda e Estados Unidos.
A emigração é uma necessidade
psicológica para o caboverdiano. Ele precisa de ultrapassar o limite das ilhas
para ver o Mundo com os próprios olhos e viver as suas próprias experiências
para depois as transmitir ao seu país. Assim recomendava o mestre António
Aurelio Gonçalves, sem dúvida, o caboverdiano que melhor se realizou como
escritor.
A emigração tem estado em todas as lutas por
Cabo Verde: contra as secas e as fomes , para a Independencia e também pela
democracia. Merecia melhor reconhecimento da Nação e dos seus políticos que
sabem exigir mas que não dão aos emigrantes direitos iguais aos dos cidadãos
residentes no país. E hoje a emigração aposta na luta pela Regionalização, pois
todo o combate por uma maior justiça social e económica lhe diz respeito. A
política de emigração actual peca pelo excesso de centralismo e o medo da
democracia plena (regional e nacional) manifesta-se ao nível do Conselho das Comunidades.
Na homenagem ao Djosinha de
Bernarda, realizada no passado dia 11 de maio em Rotterdam, falámos muito da Ofélia .e da
amizade entre ambos. O Djosinha estava sempre persente nas noites caboverdianas
no bar da Ofélia durante as suas férias em Cabo Verde. Por essa ocasião, relembramos
também outras figuras da nossa emigração, heróis do povo, ignorados pelos
Municípios e o Governo que, por falta dum verdadeiro inventario sobre as
figuras proeminentes da nossa diàápora e em especial dos fundadores das
comunidades, estão excluidas da História de Cabo Verde.
A morte da Ofélia foi sentida
em toda a diáspora. A história da nossa emigração nunca esquecerá a nossa
Ofélia, filha da terra de B.Leza e Selibana, coração do povo. A uma rua ou
avenida devia ser dado o seu nome.Uma placa devia ser fixada nas paredes do Bar
Calypso em testemunho da amizade e reconhecimento do povo do Mindelo e dos
emigrantes.
Paz a tua alma Ofélia. Que os
anjos te recebam com hinos inspirados das mornas de amor de Eugénio Tavares,
B.Leza, Jotamont , Manuel de Novas e Frank Cavaquinho. O teu nome fica inscrito
nas nossas memórias como uma das grandes figuras que lutaram pela sobrevivência
da morna e da cultura mindelense.
Luiz Silva.