OFICIALIZAÇÃO DO CRIOULO:
REFLEXÃO SOBRE AS SUAS CONSEQUÊNCIAS
Adriano Miranda Lima
Em texto publicado anteriormente
(princípios de 2005), tive ocasião de expressar a minha opinião sobre esta
temática. Não dispondo à data de nenhuma informação concreta sobre as intenções
em vista, limitei-me a uma abordagem das consequências perigosas de uma
provável subalternização da actual língua oficial.
Entretanto, tive oportunidade de ler o
livro “A Construção do Bilinguismo”, da autoria do Dr. Manuel Veiga, passando
assim a conhecer o essencial do seu pensamento sobre uma proposta viabilizadora
do projecto. No seu trabalho ensaístico, aliás rico de conceitos e com elevado
nível de exposição, o autor mostra uma visão rasgada e decidida sobre o caminho
a seguir, servida pelo seu múnus académico e profissional em Linguística e
Literatura. Contudo, espera-se que haja pluralidade na discussão desta questão
tão séria como implicativa com o futuro de Cabo Verde.
Confesso que a leitura do trabalho em
apreço não faz regredir ou inflectir as minhas considerações anteriores. Retomo
o tema, mantendo a minha análise ainda centrada mais nas prováveis
consequências futuras do projecto do que na discussão conceptual. Antes de
mais, ressalve-se que não está em causa qualquer medida tendente a prestigiar o
nosso Crioulo. Julgo inatacável esse propósito, por ser do senso comum que ao
Crioulo devem ser dadas condições para o seu progresso evolutivo, de modo a
tornar-se, num tempo futuro, e se possível, uma língua capaz de mais altos voos
na literatura e na comunicação formal. O Dr. Manuel Veiga propõe um plano para
a consecução desse objectivo, mas nele não deixo de ver o risco provável de uma
alienação futura da língua portuguesa ou do apagamento da sua importância no
panorama linguístico cabo-verdiano. Aliás, não é uma leitura subliminar que nos
diz que o Português passará à condição de “língua segunda, co-oficial e
regional”. São as próprias palavras do autor que o estipulam.
Assim, se a promoção do Crioulo for um
sucesso em todos os domínios da sua funcionalidade como instrumento de
comunicação, do que duvido, há razão fundada para presumir que não sobrará
espaço para o Português, por um natural processo glotofágico que se inicia,
susceptível entre línguas com substância matricial comum. Na verdade, o Crioulo
é um dialecto românico.
A afirmação sobre a desejada
complementaridade entre as duas línguas, sustentada por Manuel Veiga com um
enunciado de boas intenções, perde, no entanto, eficácia perante a dinâmica
subjacente ao projecto dedicado ao Crioulo, em contraponto com a indefinição do
verdadeiro espaço que competirá ao Português no ensino. É um facto que noutro
passo da obra se diz: “Para o Português, a primeira etapa (da construção do
bilinguismo) será a implementação do rigor do seu ensino com a metodologia de
língua segunda e a introdução do rigor na sua aprendizagem”. Mas, há aqui,
indisfarçável, um laivo de incoerência. Com efeito, se a carga horária passa a
ser repartida, restando saber em que proporção, é inevitável que o Português
não mais passará a dispor das condições inerentes ao ensino de primeira língua
que antes detinha. E assim, é lícito interrogar como é que uma língua desde
sempre aprendida logo no primeiro ano da escolaridade e veículo de todo o
ensino posterior até aos mais elevados graus, passará, como língua segunda,
apenas por “acrescido rigor”, conforme as palavras do Manuel Veiga, a reunir um
mínimo de condições para se manter como ferramenta linguística eficaz. Isto
parece simples panaceia para lograr um milagre. Mais, se enquanto primeira
língua do ensino não consegue conquistar espaço preferencial no quotidiano
informal dos cabo-verdianos, como pode prever-se que, depois de despromovida,
vai conseguir esse desiderato e manter-se ainda como instrumento eficaz para
outras funções nobres, como língua para o exterior?
Claro que todas estas dúvidas só se colocam
na antevisão de um cenário de sucesso absoluto das medidas propugnadas a
respeito do Crioulo. O que mais se receia é que venha a criar-se uma situação
ainda mais ingrata do que a de diglossia. Ou seja, não se consegue um
verdadeiro triunfo com a promoção do Crioulo e entretanto comprometem-se os
alicerces das estruturas seculares que sustentavam o ensino do Português. Seria
uma autêntica regressão no tempo, que nos deixaria porventura numa situação de
trágica inferioridade em relação aos nossos irmãos dos PALOP.
Em suma, é iniludível o prejuízo que a
língua portuguesa vai sofrer no quadro proposto para a construção do
bilinguismo, não obstante as intenções propaladas no sentido da sua
preservação. Entretanto, seja qual for o projecto a aprovar, atente-se na
seguinte realidade:
̶ A
CPLP (cerca de 240 milhões de almas) é tão vasta quanto diversificada na sua
natureza antropocultural. Nenhum dos seus membros parece interessado em alterar
a sua língua oficial ou condicionar o seu estatuto. Pelo contrário, em Angola e em Moçambique há sinais de uma
aposta na língua portuguesa, havendo dados oficiais que indicam ter a sua
expansão crescido em Moçambique de 10 para 40% desde a independência;
̶ Informação
oriunda do “Departamento para os Assuntos do Ensino da língua Portuguesa nos
EUA” refere que há 3 milhões de descendentes de portugueses, brasileiros e
cabo-verdianos a frequentar o ensino da língua portuguesa naquele país,
essencialmente das 2ª e 3ª gerações; e que os descendentes de portugueses e
cabo-verdianos constituem 80% daquele efectivo;
̶
Recente concurso de língua portuguesa promovido em Portugal pelo Jornal
Expresso teve a participação de um número relativamente elevado de participantes
cabo-verdianos, talvez o maior entre os PALOP, facto muito realçado e comentado
na imprensa local;
̶
Fala-se em negociações em curso para que Cabo Verde venha a usufruir de
um estatuto especial junto da União Europeia. Portugal tem irrecusavelmente deveres
morais históricos para com Cabo Verde. O uso de uma língua de Estado comum é
uma condição basilar para a unidade de discursos circunstanciais e de
estratégias visando objectivos de interesse recíproco ou proveitos indirectos
para Cabo Verde;
̶ É
previsível que Angola e Moçambique, sobretudo o primeiro país, venham, no
futuro, a tornar-se países de especial interesse para o incremento de relações
de intercâmbio e cooperação com Cabo Verde, e bem assim prováveis destinos para
o escoamento de quadros especializados cabo-verdianos;
̶ A
preferência dos nossos estudantes por estabelecimentos de ensino superior
portugueses é um facto assente. Portugal é também destino privilegiado da nossa
emigração, ou o mais a jeito, onde existe uma importante comunidade;
̶
Desde há alguns anos, canais televisivos portugueses e brasileiros levam
às populações cabo-verdianas densos pacotes de informação noticiosa e inúmeras
telenovelas de emissão diária produzidas naqueles países de língua portuguesa.
Ainda é cedo para estudar e contabilizar o impacte deste fenómeno no contexto
linguístico local, sendo de crer que não será inócua a sua influência na
linguagem corrente.
A língua comum é, pois, a razão para uma
escolha e uma preferência, uma vantagem inalienável, o elemento aglutinador
para a união que gera a força.
Toda esta realidade recomendará prudência
face a esta afirmação do Dr. Manuel Veiga: “Com o Crioulo é que Cabo Verde
marca a sua diferença no mundo”. Isto é muito discutível, pois a afirmação parece
não julgar suficiente a imagem intrínseca do povo. O Crioulo é o único selo da
sua fidelidade? Não senhor, o povo cabo-verdiano pode ostentar ao mundo outras
imagens de marca da sua identidade, porventura mais gratificantes, como a sua
imagem de povo pobre mas rico de sentimentos; de povo maltratado pelo destino
mas esperançado no futuro; de povo prisioneiro da insularidade mas aberto à
universalidade; enfim, de povo pacífico, convivente e comprometido com o
humanismo.
O mundo actual é globalizante em função de
variáveis que infelizmente os países pequenos ou de pouco peso económico não
controlam. Mas a ideia de que a afirmação da identidade é um contrapeso da
globalização pode simplesmente subentender um sentimento de auto-compensação
psicológica. Com efeito, a identidade de um povo pode hoje reforçar-se mais
pelo seu contributo civilizacional nos espaços comunitários em que intervém do
que pela exteriorização de símbolos de suposta afirmação identitária. No caso
de Cabo Verde, o dispor uma língua compartilhada por cerca de 240 milhões de
almas é um trunfo que se sobrepõe a outras cartas do baralho.
Nada me move contra a promoção do Crioulo,
nem podia mover, convenhamos. Ele é a minha língua materna, aquela que aprendi
ainda no berço. Contudo, diga-se o que se disser, na idade escolar a língua
portuguesa entra no quotidiano infantil sem grandes sobressaltos ou traumas
psicológicos. No meu caso pessoal, e certamente no de outros alunos no passado,
iniciei o ensino primário com uma professora portuguesa, que não tinha o
Crioulo como coadjuvante do seu magistério. Como foi isso possível? Em minha
opinião, a resposta é esta. Se o Português foi língua mãe nos primórdios da
formação do nosso Crioulo, com o andar dos tempos as duas línguas se tornaram uma
espécie de irmãs, embora uma delas menos presente no convívio. Mas bastou isso
para que o cabo-verdiano retivesse o essencial do Português no seu
espírito. Mesmo as crianças e os
adultos analfabetos que não o falam correctamente percebem-no de forma intuitiva.
Alguém disse que a linguagem é a revelação da sombra do pensamento.
Acrescentaria que o Crioulo se revela instantaneamente e em primeiro lugar,
enquanto o Português jaz ali, oculto nessa sombra, imiscuindo-se na intelecção
da linguagem e dando sinais vitais da sua existência.
Não há muito tempo, vi na RTP África uma
reportagem sobre a alfabetização de adultos na ilha de Santiago e comoveu-me a
imagem de pessoas idosas visivelmente felizes por aprenderem a ler e a escrever
o Português. Este apontamento humano desmente por si só a afirmação de que é
preciso descolonizar mentalidades para abrir espaço para a imposição do
Crioulo, como já li algures. Não, o povo cabo-verdiano já exorcizou todos os
fantasmas opressores do passado. Fê-lo com a sua liberdade interior e com a sua
superioridade moral. Sem complexos e sem ressentimentos. Com isso, a língua
portuguesa também se libertou de marcas odiosas, se é que uma língua alguma vez
as pode ostentar.
Admito e acho bem que o Crioulo mereça ser
objecto de estudo e de investigação em órgãos institucionais competentes. E de
ser apoiado em todo o seu percurso evolutivo com vista a permitir leituras
adequadas e oportunas sobre o seu verdadeiro futuro no contexto linguístico
cabo-verdiano. Mas não creio que deva ser com prejuízo do Português. Pelo
contrário, este deve ser objecto de uma atenção renovada, de modo a embeber-se
mais profundamente no húmus nacional, para eventualmente dele colher a sabura de certas palavras e expressões
do nosso Crioulo. Não se veja aqui qualquer sentimento apologético em relação
ao Português e em detrimento da língua materna. Mas penso que há momentos da
História em que a visão pragmática deve ser a mandatária das nossas acções.
Não queiramos andar mais depressa do que a
História. Deixemos assentar a poeira para melhor enxergarmos o caminho do
futuro. Por enquanto, a língua portuguesa é o melhor bordão da nossa jornada
pelo mundo.
2014
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