Adriano Miranda Lima
Tive ocasião de ler um interessante artigo
da autoria da Drª Ondina Ferreira, intitulado “CRIOULÊS”, publicado no jornal
“Expresso das Ilhas”, de 10 de Maio do corrente. Escreve a autora: “Tem vindo a
insinuar-se discretamente, paulatinamente, diria, quase envergonhadamente, mas
sempre em crescendo, uma nova língua – chamemo-la “Crioulês”, por comodidade de
expressão – uma forma particular de comunicar e de se fazer entender,
utilizada, sobretudo, nos “media”, pelos técnicos, pelos políticos e pelos professores
da terra, que, parecendo, não querer exprimir-se nem em Crioulo, nem em
Português, ou fugindo a isto, optam e fazem-no através desta espécie, híbrida,
de compromisso, para uma fala situada entre o Crioulo e o Português.”
Contudo, esta revelação não constituiu
qualquer surpresa para mim, apesar de não estar a viver em Cabo Verde há longos
anos. É que, em 2003, estando de visita à minha ilha natal, S. Vicente,
acompanhei pela rádio nacional uma mesa redonda em que esteve presente o
Director Geral das Alfândegas e um representante do Ministério das Finanças.
Estava em discussão a implementação de um novo regime fiscal e aduaneiro e
recordo-me bem de que a língua veicular utilizada pelos intervenientes era mais
ou menos o “Crioulês”, conforme a designa Ondina Ferreira. O debate
destinava-se a esclarecer o público e a terminologia técnica predominava na
interlocução, como o impunha a natureza específica dos assuntos em presença. Em
consequência disso, os vocábulos resultavam na sua quase totalidade em
Português, só fugindo, de um modo geral, à norma idiomática, as partículas de
ligação, os prenomes e artigos, normalmente invariáveis em género, e as flexões
verbais. Contudo, quem distraidamente estivesse a ouvir o debate e não
conhecesse a origem dos intervenientes, seria à partida induzido a identificar
uma conversação em língua portuguesa, e só instigando mais a audição notaria as
destoantes particularidades do acessório linguístico. Isto porque, mesmo que se
não quisesse, a matéria em discussão, predominantemente técnica, não podia
evitar o uso alargado do vocabulário (ou jargão) técnico português, porquanto o
Crioulo, até agora, não lhe encontrou qualquer tradução ou sucedâneo.
Tenho de confessar que acompanhei o debate
com atenção porque o Director Geral das Alfândegas foi um estimado colega de
liceu e a oportunidade de o ouvir servia para eu matar as saudades daquele que
foi um bom companheiro de carteira. Mas houve um momento em que pensei: “Que
diabo, se o intuito é facilitar a compreensão do cidadão comum menos instruído,
consegue-se o mesmo desiderato falando integralmente em Português.” Porque a
dificuldade da percepção radicava, não no acessório formal da linguagem, mas
sim naquela terminologia técnica, que em princípio seria inacessível a grande
parte dos ouvintes. É claro que tive oportunidade de assistir nos “media” a
outras mais intervenções em “Crioulês”, mas o referido debate, pela sua
duração, funcionou para mim como uma espécie de ensaio revelador de uma nova
forma de comunicar, daí que, repito, não me tenha surpreendido o conteúdo do
artigo de Ondina Ferreira.
A autora refere que o “Crioulês” resulta de
um processo iniciado há, sensivelmente, 30 anos, vindo, no entanto, à luz, com
mais notoriedade e efusão, por alturas dos anos quentes de 1974 e 1975, quando
se tornaram correntes os comícios políticos. Concordo efectivamente que o
período de afirmação revolucionária possa ter determinado a eclosão do que já
estava em fase larvar algum tempo antes. Mas sou inclinado a situá-lo em data
muito mais recuada, visto lembrar-me perfeitamente de que, já no meu tempo do
liceu, era comum utilizarmos um recurso linguístico similar ao “Crioulês” para
abordar algumas questões escolares. Por exemplo, a seguir às provas escritas de
qualquer disciplina, era frequente confrontarmos as respostas e soluções dadas
por cada um e, nessas alturas, libertos do formalismo impositivo da sala de
aula, o Português puro deixava de ser a língua veicular dos nossos pontos de
vista porque o Crioulo logo se encarregava de tomar conta de algumas
particularidades do discurso, ainda que o vocabulário presente fosse
maioritariamente em língua portuguesa, por razões que são tão óbvias como as
que se aplicam aos exemplos citados por Ondina Ferreira e ao caso do debate por
mim referido. É por este motivo que sou levado a situar a origem do “Crioulês”
em data provavelmente muito anterior à da independência, se bem que a
necessidade imediata de comunicação pública possa ter ocasionado o momento
decisivo para libertá-lo da sua timidez, emprestando-lhe uma roupagem
pseudo-formalizante.
Como interpretar o fenómeno do “Crioulês”
numa altura em que vem sendo ventilada a oficialização do Crioulo e sua
ascensão a língua do Estado? O “Crioulês” pode considerar-se um elemento de
real interesse no laboratório de ensaio onde decorrerão os estudos e as
ponderações de ordem linguística que irão propiciar os primeiros contornos da
nova língua oficial do Estado de Cabo Verde? Não me parece. Esta nova
linguagem, que tanto pode designar-se “Crioulês” como “Portucriol”, por mais
próxima do Português que do Crioulo, não tem a integridade genética da língua
de berço cabo-verdiana e, portanto, pouco relevo deverá assumir na definição da
personalidade morfológica, semântica e fonética daquela que, como é pretensão
de alguns, poderá vir a ser, ou não, a principal língua oficial do país. Caso
contrário, pouco sentido faria banir o Português como língua oficial, ou
secundarizar a sua importância, já que entre ele e o “Crioulês” não existe um
diferencial linguístico muito significativo ao nível do vocabulário.
Estará o “Crioulês” próximo de alguma
linguagem de compromisso que Baltasar Lopes ou Teixeira de Sousa, além de
outros, podem ter insinuado em algumas formas de expressão, respectivamente,
nos romances Chiquinho e Ilhéu de Contenda? Também não me parece.
Por enquanto, o “Crioulês” apenas se tem limitado à comunicação verbal, ao
passo que nos citados romances ganha forma um conluio entre o português formal
e alguma fala popular, ou seja, de raiz crioula, que é algo distinto do
“Crioulês”. É evidente a diferença entre o “Crioulês” e aquilo que é uma
manifestação diatópica. Naqueles romances, o que existe é, pois, algum
vocabulário e expressão de matriz regional, que surgem apenas em determinados contextos
socioculturais, não tendo lugar na comunicação mais erudita. Neles, o diálogo
entre os personagens de estratos culturais mais altos é sempre em Português
padrão e nas circunstâncias apropriadas com doses de conveniente erudição. Mas
em caso algum se nota deriva à norma do Português, como no “Crioulês”.
A propósito, pergunto a razão por que o
cabo-verdiano é o único povo de entre os PALOP que parece ter, como sempre
teve, um certo constrangimento em utilizar de forma natural a língua
portuguesa, ao não encará-la apenas como aquilo que ela é: uma simples língua
veicular. E isto acontece mesmo nos casos em que se domina a língua com natural
desenvoltura. Tem graça recordar-me agora das cartas que em criança o meu pai
me escrevia do estrangeiro e em que não se cansava de advertir: “Adriano,
procura falar sempre em português, mas falar sem receio, sem vergonha, e com à
vontade”. É evidente que a recomendação era perfeitamente inútil porque não me
via em circunstância alguma a conversar em português com os meus companheiros
de escola ou de brincadeira. Mas a resposta à questão atrás aflorada bem
sabemos qual é. O Crioulo não é apenas o instrumento idiomático “que acompanha
o ilhéu desde o berço até à tumba”, como bem disse Baltasar Lopes, é também uma
das marcas inconfundíveis da sua cultura. Só que a situação de bilinguismo em
que o cabo-verdiano vive cria-lhe um conflito psicológico permanente, em que o
Crioulo é o refúgio natural e imprescindível e a língua portuguesa uma vizinha
com quem tem de conviver. Este problema parece irresolúvel, porque a língua
cabo-verdiana, qualquer que seja, e mesmo que venha a tornar-se oficial, nunca
poderá abdicar da estreita convivência com o Português, até porque, segundo
parece anunciado, este continuará como segunda língua oficial. Esta salvaguarda
configurará certamente uma das condições estatutárias, ou pelo menos de ordem
cultural, para que Cabo Verde possa continuar a ser membro natural da CPLP,
ainda que com alguns traços dissonantes, com todo o seu significado real e
simbólico. Mas uma comunidade com mais de 200 milhões de falantes em Português,
veiculando a sétima ou oitava língua hoje mais falada no mundo, pode gerar uma
acção centrípeta cujo efeito não será certamente despiciendo. Só o futuro o
dirá, mas os sociolinguistas têm de estar atentos.
Provavelmente, o “Crioulês” pouco vem
acrescentar ao panorama linguístico cabo-verdiano, porque é mais fácil
antevermos cenários, ou hipotéticas resoluções administrativas, visualizando o
comportamento da língua apenas na esfera da comunicação verbal. Por enquanto, é
onde apenas medra o Crioulo e o “Crioulês”. O imbróglio surge quando entramos
no terreno da escrita.
Por tudo isto, não fazer uma aposta forte e
assumida no ensino e na comunicação em Português só vai estorvar o futuro do
nosso povo, já que os nossos parceiros pelo mundo fora, a começar pela CPLP,
não irão certamente aprender o Crioulo ou o “Crioulês” só para nos
compreenderem.
2014
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