sexta-feira, 28 de novembro de 2014

Crónicas dos Últimos dias de um Verão Quente de 1974  

Estas Crónicas revelam factos dos Últimos dias de um Verão Quente de 1974 que passaram para o lixo da História, pelo seu grau de inconveniência, não merecendo ser lembrados pela imprensa cabo-verdiana e pela actual elite dominante.  O “fait-divers” desvia a atenção dos problemas críticos do país, enquanto o passado que importa evocar é o que enaltece o partido do poder. Hoje, em Cabo Verde, é politicamente incorrecto noticiar factos que incomodam o Establishment ou trazer de volta o que o passado tem de embaraçoso.
Falar dos porões cantando (poema de Ovídio Martins) que levavam os contratados para S. Tomé, abandonados pelo PAIGC à sua sorte é ‘démodé’. Esses contratados que eram usados como arma de denúncia contra o poder colonial por um partido que prometia, na sua propaganda de 1974, (panfletos quotidianos distribuídos pela cidade, comícios, saraus) livrá-los do degredo, desde que lhe fosse entregue de bandeja o poder, foram transformados num ápice, no dia 5 de Julho, em apátridas, proscritos por toda a gente (Portugal, S. Tomé e Cabo Verde) e condenados a morrer no esquecimento. Pois é, olhando par trás S. Tomé funcionou como uma arma de arremesso, uma bandeira revolucionária muito útil na altura, mas já não dá votos nem favorece o acesso ao poder: os desgraçados contratados são os únicos culpados do que lhes acontece e aconteceu, não tinham que se alistar (‘ba dá nom’) para a longa viagem rumo ao ‘Eldorado’ S. Tomé. Nem tão pouco já  interessa a sorte da emigração revolucionária antes tão elogiada pelo papel que teve  na  infiltração do PAICV, nos anos 60, em alguns meios cabo-verdianos de França e Holanda, Suécia etc. À revolta do Mindelo encabeçada pelo Capitão Ambrósio prefere-se hoje o que melhor se encaixa na narrativa da liturgia política dos donos do poder (revolta de Rubon Manel), que assim  reescrevem a História a seu bel-prazer para nela forjarem os fundamentos da sua própria exaltação.   A mitologia revolucionária de Santiago é levada aos píncaros,  e a ilha é ungida  com pretensões a Estado, estatuto só não assumido de todo porque o pudor e a prudência talvez ainda travem os ímpetos mais afoitos.
Em suma, factos embaraçosos para o actual sistema são sistematicamente esquecidos ou silenciados, interessando apenas um enfoque propagandístico: era uma vez um Santiago sofredor por causa dos colonialistas e seus lacaios cabo-verdianos mas que agora se ergue orgulhosamente graças ao despertar dos seus filhos.
Então, vamos contar um facto que vai embaraçar muito o PAIGC e os partidos que a partir dele nasceram.
Se a minha memória não me falha, eram cerca das 9 horas de uma noite tépida de um dia do mês de Novembro de 1974 quando um evento extraordinário ia acontecer no centro da cidade do Mindelo e que, para o bem e para o mal, iria moldar os destinos desta ilha e de todo o território. A magnitude deste ‘sismo’ com epicentro em S. Vicente e que abalou Cabo Verde está na proporção directa da importância da ilha no quadro do arquipélago até 1974. É preciso recordar que quando S. Vicente espirrava Cabo Verde adoecia.
Algo estava em situação larvar  na cidade do Mindelo, desde o dia 26 de Abril, quando um grupo de alunos mais avançados do Liceu Gil Eanes (que constituíam jovens irreverentes, instantaneamente promovidos a revolucionários, pois já iniciados na oposição, alguns próximos do PAIGC e outros dissidentes do poder então vigente, ou seja, o chamado poder colonial) resolveram ‘dar o corpo ao manifesto’ e começaram a convocar comícios e a reunir-se no pátio do estabelecimento do Liceu Gil Eanes, interrompendo aulas em pleno período lectivo, para proclamar o apoio incondicional ao MFA e explicar aos mais novos o que se estava a passar. O 25 de Abril funcionou em Portugal, assim como em todos os antigos territórios ultramarinos portugueses, vulgo colónias, como uma autêntica válvula de escape, dando novas perspectivas a toda uma juventude com sede de liberdade e de sonhos, permitindo instantaneamente escapar à compressão social criada por um Estado Novo que durava 50 anos. Estava a ocorrer em MIndelo um autêntico Maio de 68, de consequências ainda mais revolucionárias do que o verdadeiro, ou seja, uma mudança total de paradigma social e político auspiciosa para uma aspirante a nação. A elite poderosa caía do cimo do seu pedestal para ouvir a verdade das bocas dos jovens ingénuos e confiantes no futuro: vai haver paraíso aqui nestas terras de S. Vicente e de Cabo Verde!!!
Nesse dia de Novembro ordens foram dadas (por quem? Pela rua?) para se rumar em direcção à mais famosa praça de Cabo Verde, Praça Nova (um sítio onde a juventude e a intelectualidade se deslocavam para discutir e saber das notícias do Mundo, e a população, aos domingos, exibia  as sua melhores roupas), pois um evento especial, excepcional, excitante, ia ali ocorrer, nessa que seria a mais quente noite de Mindelo do fim de um Verão de 1974. Estávamos perante o ponto mais alto, o clímax da efervescência revolucionária, o culminar do Maio 68 mindelense e o início da revolução cultural cabo-verdiana, a tomada do poder, a transferência do poder para o povo mindelense: o poder estava literalmente nas ruas, tudo estava consumado. Durante anos ninguém mais teria rédea neste povo, que se julgava e sentia de repente ‘livre’, liberto de todas as amarras do poder do Estado, e da longa ‘noite colonial’ segundo a narrativa do PAIGC. Tratava-se da Tomada de Assalto da Rádio Barlavento por um grupo de acólitos do PAIGC. Essa rádio era detida pela elite mindelense, pessoas apodadas de colonialistas, reaccionárias, ‘catchor de dos pé’ (um termo inventado pelos jovens) constituída essencialmente por altos funcionários e pessoas ligadas ao meio comercial e industrial do arquipélago. A Rádio Barlavento, assim como a Rádio Clube, era uma rádio privada, que estava ali à mão de semear para alimentar o apetite de todos os que queriam jogar um papel nos destinos de Cabo Verde. Recorde-se que passado pouco tempo depois 25 de Abril abriu-se o  jogo, e essa Rádio voltou ao seu natural, jogando um papel activo de oposição à corrente dominante, ao PAIGC e à independência imediata de Cabo Verde, embora permitindo a propaganda de afectos ao PAIGC. Quem detivesse essa rádio detinha uma alavanca importante do poder em Cabo Verde. O mais picante da história da tomada da rádio é que o golpe foi supervisionado pela representação local do Movimento das Forças Armadas Portuguesas (MFA), que ainda controlavam a situação no terreno, e que foram chamadas para dar caução aos actos de ocupação ilegal, aos desacatos e à intimidação de pessoas, legitimando assim um ‘coup de force’ ilegal. Os dados estavam definitivamente jogados e escreviam-se assim páginas da História de Cabo Verde, provisoriamente o destino desta ilha seria entregue nas mãos de jovens revolucionários que mais tarde o passariam para as de grupos recém-chegados, os de Conacri-Rabat (quadros do PAIGC) e os dos jovens estudantes de Lisboa, apodados de esquerdistas, dois grupos mais experientes e rodados na política, que iriam digladiar entre si ainda por mais 5 anos pelo controle do poder total em Cabo Verde. Este evento marca talvez o início da decadência da ilha, desencadeou uma fuga em massa da classe media alta residente que tentava escapar à revolução e à onda de exações que era fácil prever.  A situação de caos instalada no arquipélago era tal que jovens transformados em milícias populares podiam circular armados e fazer vigilância, criando situações que em muitos casos podiam acabar em terror e excessos cometidos contra quem ousasse ensaiar um discurso discordante com a tendência do momento. Como se sabe, o poder foi, na prática, transferido do MFA para o grupo de Conacri-Rabat, seguido da instauração, por este, do sistema de partido único que durou 15 anos. Este regime, que se legitimava com a narrativa épica da Luta de Libertação, em que os seus protagonistas se consideram os melhores filhos de Cabo Verde, apoderou-se de todas as rédeas do poder, do económico e político à informação, criando um perfeito regime totalitário que privou os cabo-verdianos do exercício das liberdades mais básicas e fundamentais: liberdade de expressão, de opinião o exercício do voto livre, para além de um total condicionamento económico, social e político da população que ainda hoje perdura 40 anos depois do evento. Nunca mais Cabo Verde seria igual: as amarras que o ligavam à potência administrante e colonial foram assim violentamente e definitivamente cortadas.
Novembro continua sendo um mês histórico em Mindelo. Foi em Novembro de 2010 que cidadãos mindelenses resolveram lançar um Movimento para a Regionalização e lançar o seu Manifesto, provando que a ilha ainda não morreu e ainda há moicanos que se dignam lutar por ela e um Cabo Verde melhor. Foi em Mindelo que em Novembro de 2012 se organizou uma palestra aberta ao público sobre a Regionalização e onde a população mostrou a sua adesão a essa reforma. Será de novo este mês que o Grupo de Reflexão sobre a Regionalização de Cabo Verde (AGRRCV) vai comemorar a sua oficialização a uns dias de acontecer a iniciativa governamental da Cimeira relativa à Regionalização de 02 e 03 de Dezembro de 2014, e da qual vai ser excluída assim como a sociedade civil e todos aqueles que contribuíram com as sua ideias e as divulgaram nos meios de comunicação para promover um debate aprofundado da regionalização, excepção, obviamente, do cidadão Onésimo Silveira, convidado pessoalmente como especialista, mas político próximo das esferas do poder.

28 de Novembro de 2014
                                   José Fortes Lopes

PS: Dedico este artigo a todas às vitimas da intolerância do período de 1974 / 1975 em S. Vicente e Cabo Verde e a todos os mindelenses que nunca se vergaram face à opressão e não se calam face às injustiças em troco de benesses e mordomias.

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