Crónicas dos Últimos dias de um Verão Quente de 1974
Estas Crónicas revelam
factos dos Últimos dias de um Verão Quente de 1974 que passaram para o lixo da
História, pelo seu grau de inconveniência, não merecendo ser lembrados pela
imprensa cabo-verdiana e pela actual elite dominante. O “fait-divers” desvia a atenção dos
problemas críticos do país, enquanto o passado que importa evocar é o que
enaltece o partido do poder. Hoje, em Cabo Verde, é politicamente incorrecto
noticiar factos que incomodam o Establishment ou trazer de volta o que o
passado tem de embaraçoso.
Falar dos porões cantando (poema de Ovídio
Martins) que levavam os contratados para S. Tomé, abandonados pelo PAIGC à sua
sorte é ‘démodé’. Esses contratados que eram usados como arma de denúncia
contra o poder colonial por um partido que prometia, na sua propaganda de 1974,
(panfletos quotidianos distribuídos pela cidade, comícios, saraus) livrá-los do
degredo, desde que lhe fosse entregue de bandeja o poder, foram transformados num
ápice, no dia 5 de Julho, em apátridas, proscritos por toda a gente (Portugal,
S. Tomé e Cabo Verde) e condenados a morrer no esquecimento. Pois é, olhando
par trás S. Tomé funcionou como uma arma de arremesso, uma bandeira
revolucionária muito útil na altura, mas já não dá votos nem favorece o acesso
ao poder: os desgraçados contratados são os únicos culpados do que lhes
acontece e aconteceu, não tinham que se alistar (‘ba dá nom’) para a longa viagem rumo ao ‘Eldorado’ S. Tomé. Nem tão
pouco já interessa a sorte da emigração
revolucionária antes tão elogiada pelo papel que teve na infiltração do PAICV,
nos anos 60, em alguns meios cabo-verdianos de França e Holanda, Suécia etc. À
revolta do Mindelo encabeçada pelo Capitão Ambrósio prefere-se hoje o que
melhor se encaixa na narrativa da liturgia política dos donos do poder (revolta
de Rubon Manel), que assim reescrevem a
História a seu bel-prazer para nela forjarem os fundamentos da sua própria
exaltação. A mitologia revolucionária de Santiago é
levada aos píncaros, e a ilha é
ungida com pretensões a Estado, estatuto
só não assumido de todo porque o pudor e a prudência talvez ainda travem os
ímpetos mais afoitos.
Em suma, factos
embaraçosos para o actual sistema são sistematicamente esquecidos ou silenciados,
interessando apenas um enfoque propagandístico: era uma vez um Santiago
sofredor por causa dos colonialistas e seus lacaios cabo-verdianos mas que agora
se ergue orgulhosamente graças ao despertar dos seus filhos.
Então, vamos contar um
facto que vai embaraçar muito o PAIGC e os partidos que a partir dele nasceram.
Se a minha memória não me falha, eram cerca das 9 horas
de uma noite tépida de um dia do mês de Novembro de 1974 quando um evento
extraordinário ia acontecer no centro da cidade do Mindelo e que, para o bem e
para o mal, iria moldar os destinos desta ilha e de todo o território. A
magnitude deste ‘sismo’ com epicentro em S. Vicente e que abalou Cabo Verde
está na proporção directa da importância da ilha no quadro do arquipélago até
1974. É preciso recordar que quando S. Vicente espirrava Cabo Verde adoecia.
Algo estava em situação larvar na cidade do Mindelo, desde o dia 26 de Abril,
quando um grupo de alunos mais avançados do Liceu Gil Eanes (que constituíam
jovens irreverentes, instantaneamente promovidos a revolucionários, pois já
iniciados na oposição, alguns próximos do PAIGC e outros dissidentes do poder
então vigente, ou seja, o chamado poder colonial) resolveram ‘dar o corpo ao manifesto’ e começaram a
convocar comícios e a reunir-se no pátio do estabelecimento do Liceu Gil Eanes,
interrompendo aulas em pleno período lectivo, para proclamar o apoio
incondicional ao MFA e explicar aos mais novos o que se estava a passar. O 25
de Abril funcionou em Portugal, assim como em todos os antigos territórios
ultramarinos portugueses, vulgo colónias, como uma autêntica válvula de escape,
dando novas perspectivas a toda uma juventude com sede de liberdade e de
sonhos, permitindo instantaneamente escapar à compressão social criada por um
Estado Novo que durava 50 anos. Estava a ocorrer em MIndelo um autêntico Maio
de 68, de consequências ainda mais revolucionárias do que o verdadeiro, ou
seja, uma mudança total de paradigma social e político auspiciosa para uma
aspirante a nação. A elite poderosa caía do cimo do seu pedestal para ouvir a
verdade das bocas dos jovens ingénuos e confiantes no futuro: vai haver paraíso
aqui nestas terras de S. Vicente e de Cabo Verde!!!
Nesse dia de Novembro ordens foram dadas (por quem? Pela rua?) para se rumar em
direcção à mais famosa praça de Cabo Verde, Praça
Nova (um sítio onde a juventude e a intelectualidade se deslocavam para
discutir e saber das notícias do Mundo, e a população, aos domingos, exibia as sua melhores roupas), pois um evento
especial, excepcional, excitante, ia ali ocorrer, nessa que seria a mais quente
noite de Mindelo do fim de um Verão de 1974. Estávamos perante o ponto mais
alto, o clímax da efervescência revolucionária, o culminar do Maio 68
mindelense e o início da revolução cultural cabo-verdiana, a tomada do poder, a
transferência do poder para o povo mindelense: o poder estava literalmente nas
ruas, tudo estava consumado. Durante anos ninguém mais teria rédea neste povo,
que se julgava e sentia de repente ‘livre’, liberto de todas as amarras do
poder do Estado, e da longa ‘noite colonial’ segundo a narrativa do PAIGC.
Tratava-se da Tomada de Assalto da Rádio Barlavento por um grupo de acólitos do
PAIGC. Essa rádio era detida pela elite mindelense, pessoas apodadas de
colonialistas, reaccionárias, ‘catchor de dos pé’ (um termo inventado pelos
jovens) constituída essencialmente por altos funcionários e pessoas ligadas ao
meio comercial e industrial do arquipélago. A Rádio Barlavento, assim como a
Rádio Clube, era uma rádio privada, que estava ali à mão de semear para
alimentar o apetite de todos os que queriam jogar um papel nos destinos de Cabo
Verde. Recorde-se que passado pouco tempo depois 25 de Abril abriu-se o jogo, e essa Rádio voltou ao seu natural,
jogando um papel activo de oposição à corrente dominante, ao PAIGC e à
independência imediata de Cabo Verde, embora permitindo a propaganda de afectos
ao PAIGC. Quem detivesse essa rádio detinha uma alavanca importante do poder em
Cabo Verde. O mais picante da história da tomada da rádio é que o golpe foi
supervisionado pela representação local do Movimento das Forças Armadas
Portuguesas (MFA), que ainda controlavam a situação no terreno, e que foram
chamadas para dar caução aos actos de ocupação ilegal, aos desacatos e à
intimidação de pessoas, legitimando assim um ‘coup de force’ ilegal. Os dados
estavam definitivamente jogados e escreviam-se assim páginas da História de
Cabo Verde, provisoriamente o destino desta ilha seria entregue nas mãos de
jovens revolucionários que mais tarde o passariam para as de grupos
recém-chegados, os de Conacri-Rabat (quadros do PAIGC) e os dos jovens
estudantes de Lisboa, apodados de esquerdistas, dois grupos mais experientes e
rodados na política, que iriam digladiar entre si ainda por mais 5 anos pelo
controle do poder total em Cabo Verde. Este evento marca talvez o início da
decadência da ilha, desencadeou uma fuga em massa da classe media alta
residente que tentava escapar à revolução e à onda de exações que era fácil
prever. A situação de caos instalada no
arquipélago era tal que jovens transformados em milícias populares podiam
circular armados e fazer vigilância, criando situações que em muitos casos podiam
acabar em terror e excessos cometidos contra quem ousasse ensaiar um discurso
discordante com a tendência do momento. Como se sabe, o poder foi, na prática,
transferido do MFA para o grupo de Conacri-Rabat, seguido da instauração, por
este, do sistema de partido único que durou 15 anos. Este regime, que se
legitimava com a narrativa épica da Luta de Libertação, em que os seus
protagonistas se consideram os melhores filhos de Cabo Verde, apoderou-se de
todas as rédeas do poder, do económico e político à informação, criando um
perfeito regime totalitário que privou os cabo-verdianos do exercício das
liberdades mais básicas e fundamentais: liberdade de expressão, de opinião o exercício do voto livre, para além de um total
condicionamento económico, social e político da população que ainda hoje
perdura 40 anos depois do evento. Nunca mais Cabo Verde seria igual: as amarras
que o ligavam à potência administrante e colonial foram assim violentamente e
definitivamente cortadas.
Novembro continua sendo um mês histórico em Mindelo. Foi
em Novembro de 2010 que cidadãos mindelenses resolveram lançar um Movimento
para a Regionalização e lançar o seu Manifesto, provando que a ilha ainda não morreu
e ainda há moicanos que se dignam lutar por ela e um Cabo Verde melhor. Foi em
Mindelo que em Novembro de 2012 se organizou uma palestra aberta ao público
sobre a Regionalização e onde a população mostrou a sua adesão a essa reforma.
Será de novo este mês que o Grupo de Reflexão sobre a Regionalização de Cabo
Verde (AGRRCV) vai comemorar a sua oficialização a uns dias de acontecer a
iniciativa governamental da Cimeira
relativa à Regionalização de 02 e 03 de Dezembro de 2014, e da qual vai ser excluída assim como a sociedade civil e todos
aqueles que contribuíram com as sua ideias e as divulgaram nos meios de
comunicação para promover um debate aprofundado da regionalização, excepção,
obviamente, do cidadão Onésimo Silveira, convidado pessoalmente como
especialista, mas político próximo das esferas do poder.
28 de Novembro de 2014
José Fortes
Lopes
PS: Dedico este artigo a todas às vitimas da intolerância
do período de 1974
/ 1975 em S. Vicente e Cabo Verde e a todos os mindelenses que nunca se
vergaram face à opressão e não se calam face às injustiças em troco de benesses
e mordomias.
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