O
PECADO ORIGINAL E O PEDREGOSO CAMINHO DA REMISSÃO
Luiz Silva, num seu artigo publicado há tempos
no jornal “Notícias do Norte”, com o título “Autonomia e Regionalização”,
afirmou: “Parece mesmo que se pretende a autonomia de Santiago, antes de todas
as ilhas, com a concentração de todos os investimentos em Santiago em
detrimento das outras ilhas, como o investimento no porto da Praia, a
construção de estaleiros navais na Praia, universidades, centros culturais,
etc., quando em São
Vicente pouco ou nada se faz.”
Estas palavras só poderão ter surpreendido
quem abdicou das suas faculdades cognitivas ou vive completamente alienado, não
se esforçando por deitar um olhar crítico ao que se passa à sua volta. E os que
vivem onde os benefícios das opções políticas se concentraram, certamente que só
terão motivo para abjurar as palavras daquele autor, não porque não lhes
reconheçam justeza, mas porque a isenção é um predicado pouco conveniente
quando se é parte interessada no diferendo.
Este fenómeno que o Luiz Silva e os
“regionalistas” vêm denunciando, teve a sua génese em 1975, a partir do momento
em que o regime de partido único não só concentrou a totalidade do Estado num
único lugar do país, como promoveu que isso viesse a tornar-se, em termos
práticos, num objectivo primário e num propósito que o Estado perseguiu com
aparente escrúpulo, com isso subvertendo a expectativa de igualdade
generalizada que o ideário da independência criara em 1974 nos espíritos dos
cabo-verdianos. Mesmo que alguma preocupação atinente a um justo equilíbrio no
país estivesse ressalvado no coração do poder instituído, e não haverá razão
para presumir o contrário, estava criado o paradigma que haveria de condicionar
o modelo de desenvolvimento integral do país independente. O que o coração do poder
político não pôde evitar, conseguiu-o a inadvertência de quem ainda não possuía
estaleca de verdadeiro estadista ou não tinha a visão aguçada para a previsão e
o acautelamento do futuro. Construíram os alicerces e, tijolo a tijolo, foi
ganhando forma e consistência a arquitectura da “República de Santiago”, como
lhe chamou, com propriedade, há anos, Onésimo Silveira.
Fiquemo-nos por estas suposições, porque
se entrarmos nos domínios da psicanálise política lembrar-nos-emos de que um
responsável político afirmou alto e bom som, em 1975, que S. Vicente tinha de
se preparar para sofrer sacrifícios depois de privilegiada, durante décadas,
pelo colonialismo. Inacreditável! Mas outro factor adjuvante poderá ter pesado também
na decisão tomada pelo poder político no acto da construção do novo Estado. Hoje,
é mais uma vez a ilha de S. Vicente que está no centro da efervescência cívica
a chamar a atenção do poder para a necessidade de uma mudança de paradigma, tal
como agira em 1975 quando se movimentou para franquear a entrada do PAIGC no
território. Por estranho que pareça, terá sido a identidade cultural bem
vincada e demarcada da ilha de S. Vicente, que poderia ter sido fonte de
inspiração e catalisadora de energia, a causa determinante da sua alienação a
seguir à independência. Pois, como já aflorámos em outras intervenções, S. Vicente
foi vítima de uma identidade própria, não ostensivamente exibida mas
naturalmente assumida, por ela ser tendencialmente destoante do modelo de
cultura social preferido pela política do nóvel Estado independente.
Com feito, o facto de ser ilha de uma
população com laivos próprios na sua idiossincrasia, terá constituído a razão
por que não foi tida como credora da maior confiança do regime político que
assumiu a condução dos destinos do país. Sim, sabia-se que o histórico
movimento de consciencialização nacional cabo-verdiano nascido em S. Vicente –
Movimento Claridoso − era prova bastante de que a história contemporânea do
país teria naquela ilha a sua fonte natural de reconstituição anímica e
ideológica, mas porventura com uma postura nunca acomodada. Provavelmente, os
detentores da rédea política de então intuíram que uma sociedade vocacionada
para a efervescência intelectual seria menos recomendável para o suporte dos
alicerces do novo Estado do que uma população mais homogénea no seu perfil psicológico
e porventura mais cordata com os desígnios do poder, principalmente se este a
privilegia com o imediatismo da sua presença tutelar.
É a esta última conclusão que temos
forçosamente de chegar quando vemos que a estratégia política interna determinou
a instalação e o entrincheiramento de todo o Estado num único lugar do
território. Poderemos admitir que razões de ordem económica de algum modo tenham
também intervindo na decisão, mas é sempre possível imaginar que pesou
sobremaneira a necessidade de salvaguardar o reduto do poder político de
eventuais ameaças ou perturbações sociais internas. Prosseguindo o raciocínio,
dir-se-á que houve preocupação de preservar o poder dos inconvenientes da
exposição mais promíscua a que ele ficaria sujeito com uma dispersão dos órgãos
de soberania e das superestruturas de administração pública. Tudo concentrado e
densificado transmite uma sensação de segurança que advém da homogeneidade, da
simplificação modelada numa única linguagem política, da aparente solidariedade
assente num monolitismo ideológico. No fundo, é a revelação da síndrome de
intranquilidade de consciência que é comum aos regimes de feição autoritária ou
que aí buscam a linha matricial da sua política. Mesmo que mitigado nos
processos, como foi seguramente o nosso caso.
Desta maneira, temos de convir que a
concepção do Estado em Cabo Verde criou o ónus de um pungente Pecado Original, de tal forma ele tende
a ser de difícil remissão, de tal modo tende a condicionar o futuro colectivo,
anquilosando-o num único ponto de florescência, em lugar de lhe permitir
nódulos de germinação natural e espontânea, com a fertilização bem-vinda do
húmus da democracia. Esse pecado, por analogia bíblica, produz um efeito
hereditário, ou atavismo, e faz com que a Ilha capital continue a ser alvo
privilegiado dos maiores investimentos, em larga e manifesta desproporção com o
resto do país. O grande problema que hoje se nos apresenta é saber como
confessar esse pecado à puridade para assim se livrar dos seus efeitos maléficos,
susceptíveis de perpetuarem de geração em geração. A desconcentração dos órgãos
de soberania e de outras instituições superiores do Estado poderia ser o primeiro
passo para a remissão desse pecado. Infelizmente, os sinais que fomos colhendo
sempre apontaram para o sentido contrário, e, reconhecidamente, o pecado deixou
de ser culpa exclusiva do partido fundador da independência, já que o que se
lhe seguiu na cadeira do poder não deu mostras de querer professar um credo
diferente. A ideologia e a justiça deixaram de ser os referenciais básicos da
orientação política, porque passou a pesar inapelavelmente a carga do
compromisso com a clientela que se instalou e cresceu desmesuradamente na Praia
à custa dos erros e vícios em que a política incorreu. Seja a clientela pública
ou privada.
Demonstrado que a política agiu ao arbítrio
da História e das aspirações naturais das diversas populações das ilhas, é por
esta óptica irrecusável que temos de olhar para o abandono acentuado sofrido
pela ilha de S. Vicente e outras, mas sobretudo, e ostensivamente, a ilha do
Porto Grande, já que ela tinha e tem potencialidades exploráveis que
recomendavam lhe fosse dispensado um tratamento mais consentâneo com o seu
passado e a sua importância na economia e na cultura do arquipélago. A pobre
desta ilha, nas mãos do poder político, foi como um balão picado com um subtil
alfinete para que se fosse esvaziando lenta e silenciosamente, com o cuidado
apenas de lhe disfarçar o estertor final com alguns paliativos, para que quem
assistisse não se espantasse com o estrondo do rebentamento.
Infelizmente, nem mesmo a partir de
1991, com a abertura democrática, e contrariamente ao que seria de esperar,
houve coragem, arte ou bom senso políticos para alterar o paradigma e evitar,
talvez ainda a tempo, que a capital evoluísse continuamente para uma realidade
hiperbólica e que Santiago continuasse a deter com chocante desmesura os
privilégios dos investimentos, a ponto de o concelho de Santa Catarina, o
segundo dessa ilha, se superiorizar à ilha de S. Vicente, a segunda ilha do
arquipélago, e antigamente a primeira, na fruição do bolo orçamental, como
ainda neste ano se verificou.
Na
verdade, é irrefutável o erro clamoroso de conceber o figurino
político-administrativo do Estado mercê de uma visão tão radicalmente
concentracionária, tão exclusivista e castradora das mais legítimas aspirações
de um povo que se define precisamente pela diversidade da sua natureza
intrínseca. Diversidade que é fatalmente geográfica, mas fundamentalmente
sociológica, psicológica e cultural.
E o resultado era inevitável. Como é dos
livros, depois de um Estado assentar todo o seu arraial numa só cidade/ilha,
tudo o que sobrevém passa a ser causa e consequência do próprio Estado
aglutinado e absorvente, que, com a sua inércia, vai estimulando indirectamente
a atracção da periferia, que aos poucos se vai esboroando e desertificando para
se acolitar à sombra proteccional do conglomerado de recursos possíveis. Por
esta dinâmica é que se criaram assimetrias no território e, reflexivamente, na
mente das populações, assimetrias indesejáveis que um Estado atento e curial
tinha o dever de prevenir e eliminar, em vez de continuar a criar condições
propiciadoras da sua perpetuação, como foi acontecendo, e não obstante
repetidos alertas emitidos pela sociedade civil, nomeadamente na ilha de S.
Vicente.
Não fora essa visão arbitrária do conjunto
nacional, não haveria hoje lugar aos sinais de descontentamento que foram
surgindo nas ilhas marginalizadas, com cidadãos de S. Vicente, residentes e em
comunidades exteriores, a liderar um movimento cívico em ordem à mudança do
actual modelo de Estado e à adopção de um projecto de descentralização e
regionalização.
Nesta altura, a nossa expectativa vira-se
para a promessa do actual governo do MpD no sentido de conceber, propor e
submeter ao Parlamento um projecto de descentralização da administração pública
e criação de regiões administrativas no país, ao encontro das reivindicações
promovidas pelos defensores do processo.
Por enquanto, não haveria razão para supor
que as nossas expectativas estão a ser frustradas, porque nada de concreto veio
ainda a lume. Contudo, os sinais que vêm sendo emitidos pelo Governo parecem em
contraciclo com os propósitos anunciados sobre o reequilíbrio político-administrativo
do território nacional. Na abertura do Parlamento, para apresentação do programa
do actual governo, a primeira medida foi a aprovação do Estatuto Especial para
a cidade da Praia, como se tal matéria significasse o cume das prioridades
nacionais, como se tal medida não pudesse ser enquadrada racionalmente na
reforma do Estado prometida na campanha eleitoral e com a qual o MpD
capitalizou o voto maioritário do povo da ilha de S. Vicente. Mas outros mais sinais
vêm desmentindo a intenção propalada pelo governo do MpD, parecendo mesmo
afrontar a intencionalidade do que fora prometido. Um sinal absolutamente
incompreensível, e intolerável, foi ter colocado a ilha de S. Vicente em quinto
lugar na ordem da distribuição do bolo orçamental para este ano, ficando muito
abaixo do concelho de Santa Catarina da ilha de Santiago. Além disso, tem
havido sucessivas notícias sobre avultados investimentos estrangeiros direccionados
sempre para o mesmo destinatário – a ilha de Santiago − dando a ideia de que
existe uma mancomunação na estratégia negocial com o estrangeiro a vincular
prioritariamente a ilha capital, como se Cabo Verde não fosse uma realidade
nacional de nove ilhas habitadas.
Este surto de sinais negativos,
contrariando flagrantemente o prometido pelo actual governo às ilhas
marginalizadas pela política centralista e pela estratégia concentracionária
promovidas ao longo de décadas, não pode deixar de inquietar os mindelenses.
Porque não é possível descortinar uma conexão lógica entre a intenção anunciada
e alguma factualidade recente, a menos que o surrealismo tenha passado a ser a
marca de água do comportamento político em Cabo Verde.
Como disse José Fortes Lopes num seu
artigo − “As Novas Encruzilhadas de Cabo Verde”−, não podemos permanecer
emudecidos, impávidos ou indiferentes, à espera que seja só poder político a
alinhavar o nosso destino. De facto, a democracia só vale a pena e só realiza
os seus desígnios se houver uma permanente interacção entre a sociedade, os
governos e as forças políticas.
Por isso, é imperioso que o tema da
regionalização seja “socializado” em todos os fóruns de discussão possíveis,
oficiais ou privados. O projecto de lei que, como se espera, a seu tempo será
divulgado, não pode deixar nenhum cidadão indiferente, sobretudo nas ilhas da
periferia do poder. Cada um de nós tem de tomar posição porque é o futuro que está
em causa. O Pecado Original cometido há mais de quarenta anos tem de ser remido
por todos, ainda que se preveja pedregoso e semeado de escolhos o caminho da
remissão.
Tomar, Março de 2017
Adriano Miranda Lima
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