quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Sobre a inoportunidade e a impertinência de Estatutos Especiais em Cabo Verde: Perguntas e Respostas (continuação)
    
                              Estatuto Especial, uma redundância. E se a moda pega?


                                                  José Fortes Lopes (artigo publicado em  Junho de 2016)

     Independentemente dos quadros legais forjados para os legitimar, os Estatutos Especiais são inaceitáveis. É óbvio que o que se prevê para a Praia teria que ser incluído no debate geral das reformas e objecto de um escrutínio transparente, sem o que somos colocados perante um facto consumado e atentatório dos princípios mais elementares da ética democrática. Por outro lado, caso um estatuto especial pudesse ser, justificadamente, atribuído a uma parcela do território, só o poderia ser a título provisório, nunca definitivo, por um período temporal limitado (3 a 5 anos), até à resolução dos problemas que levaram à sua concessão. Se virmos bem, haveria pelo menos meia dúzia de argumentos a jogar a favor de um estatuto especial à cidade do Mindelo, a 2ª cidade do país, a que mereceu, muito justamente, ser considerada a capital cultural de Cabo Verde. E não haveria também argumentos casuísticos a justificar a atribuição de um estatuto especial às comunidades de ilhas ultraperiféricas como Maio e Brava? Em suma, todas as cidades de Cabo Verde são “especiais” em si, por uma razão ou por outra.
     A questão que se coloca é o porquê do atribuir à capital de um país um estatuto especial, para além dos dividendos de toda a ordem que já colhe pela própria condição de capital. O estatuto especial para uma cidade-capital é uma perfeita redundância, um novo estatuto em cima de outro, que se traduz no acréscimo de mais uma peça à terrível e perniciosa engrenagem do centralismo. Afinal, ao invés da prometida descentralização, pretende-se mais do mesmo, por mais que alguém queira deitar poeira aos olhos dos incautos.  Além disso, a cidade da Praia, já por si prenhe de benefícios, se está a rebentar pelas costuras é pelo erro original cometido na concepção do Estado cabo-verdiano. O que faz sentido é corrigir o erro na sua causa original, aliviando, entre outras medidas, a indevida superlotação da capital, e não a aplicação de um fermento para o caucionamento da enormidade social em que ela se transformou. Insistir nesse Estatuto não deixará de ser altamente lesivo para os interesses e a dignidade das outras ilhas do arquipélago que foram negligenciadas e reclamam atenção.
     Ademais, é importante não esquecer que o actual partido no poder tem uma responsabilidade acrescida perante os cabo-verdianos, por se ter apresentado ao eleitorado como um partido renovado, prometendo romper com as práticas negativas que remontam ao regime anterior. O governo sabe bem que se ascendeu ao poder, deve-o em parte significativa às energias cívicas dispersas pelas ilhas e pela Diáspora, que lhe permitiram conquistar uma expressiva votação eleitoral em todo país, nomeadamente na ilha de S. Vicente. E não pode ignorar que a sua vitória teve o sinal claro da rejeição das políticas do seu antecessor.

     Estatuto Especial mais centralização: mais Praia e menos Cabo Verde?

     A resposta é afirmativa e não deixa margem para dúvidas, bastando anotar que as políticas empreendidas ao longo destes 41 anos consistiram no empolamento do centro e no enfraquecimento das periferias. Aliás, tudo isso em perfeita coerência com a afirmação pública do presidente do PAIGC em 1975, quando sustentou que os investimentos tinham de passar a privilegiar a ilha de Santiago e a capital para se poderem ressarcir da menorização a que foram sujeitas durante o colonialismo. E que, em consequência, a ilha de S. Vicente tinha de se preparar para tempos de sacrifício. Não deixou de ser um agradecimento condigno a uma ilha que jogou um papel determinante, durante o ano de 1974, na ascenção de Cabo Verde à Independência e que levou o PAIGC ao poder.
    Interessará, a bem da verdade, demonstrar a falsidade daquela tese, e nesse sentido nada como revisitar a história e fazer uma breve e sucinta análise comparativa entre as realidades sociais nas duas mais importantes ilhas do arquipélago. A ilha de S. Vicente, a partir do século XIX, passou a ser o pulmão da economia do país, contribuindo para cerca 75% das receitas da colónia, graças à actividade do seu porto e aos investimentos industriais e comerciais feitos por entidades privadas. O empreendedorismo económico e a dinâmica da sociedade civil na ilha do Porto Grande permitiram ganhos e benefícios assinaláveis para todo o território, evitando que Portugal tivesse de estipular verbas mais substanciais para a administração da colónia. Graças ao dinamismo económico da ilha, Cabo Verde era uma colónia auto-sustentável até meados do século passado.
     Diferentemente, a ilha de Santiago e a capital da colónia viviam quase exclusivamente à custa do orçamento do Estado, ou seja, do contributo de S. Vicente. A capital da colónia estava instalada na Praia, não pela importância social da cidade, mas pela tradição histórica, depois pela inércia política, não obstante ter sido decretada a transferência da capital para MIndelo. No entanto, não obstante ser a mais contemplada em termos orçamentais, a cidade da Praia estava estagnada na sua pacatez provinciana, sem vitalidade cívica e incapaz de gerar desenvolvimento e progresso, cuja dimensão Jonas Wahnon ilustra perfeitamente (1): “uma pequena cidade composta apenas por quatro principais ruas e cujo mérito era ter a capital da Província, porque nem como escoadouro natural dos produtos produzidos pela ilha de S.Tiago serve”.
     Se a cidade não registou progressos sociais assinaláveis, dignificando a sua condição de capital, durante a administração colonial, foi pela inoperância ou irrelevância da sociedade civil local, embora beneficiando do privilégio da proximidade da máquina administrativa. Portanto, a diferença entre a cidade da Praia e a do Mindelo provinha do grau diferenciado de iniciativa e criatividade das respectivas elites sociais, umas vivendo prosaicamente à custa do orçamento do Estado, outras produzindo riqueza que revertia em parte significativa para o orçamento do Estado. E contudo, por estranha ironia, a ilha de S. Vicente e a cidade do Mindelo estavam longe de beneficiar de um investimento estatal minimamente condizente com o contributo das suas receitas. É ainda o Jonas Wahnon que o denuncia nos seguintes termos (2): “O que existe realmente - e sabe o Sr. Dr. Bento Levy perfeitamente -, é o desejo sincero de toda a gente, que haja uma aplicação mais útil e de melhor alcance económico dos dinheiros da Província para o bem-estar do seu povo e orgulho de Portugal; o que existe ainda é o desejo de que os indivíduos que se encontram à testa dos serviços públicos na Praia tenham um influência mais benéfica na administração da Província em lugar de pretenderem, por norma “colonialisar" S. Vicente negando-lhe sistematicamente todos os meios de progresso, sem quererem lembrar-se de que, se um dia faltassem à Província as receitas desta ilha, toda a máquina administrativa do arquipélago se desmantelaria.”… Adianta ainda: “Ao contrário do que acontece na Praia, onde as construções urbanas se vêm fazendo (pelo Estado, é claro, da forma, mais acelerada que imaginar se possa, S.Vicente possui um pequeníssimo Tribunal numa casa quási secular que dantes era habitação particular e que não é património do Estado; O Liceu não obstante fundado há 40 anos, funciona num prédio que foi, sucessivamente quartel, correio, Liceu, Câmara, Fazenda e não sei que mais; não possui nenhum prédio para magistrados nem outros funcionários: os cineteatros que existem são particulares, como particulares são quási todas as obras de valorização da cidade; não tem um só hotel; não tem esgoto; não tem água canalizada; a luz é precária; os pavimentos das ruas são uma miséria, não possui estradas dignas deste nome, e os caminhos carroçáveis que existem alguns encontram-se há anos intransitáveis, etc. etc.”.
     Basta este pequeno bosquejo histórico para se dar conta do despudorado atropelo à verdade em que incorreram, e persistem em incorrer, os mentores do discurso oficial que procura vitimizar a cidade da Praia só para justificar privilégios e regalias que não fazem sentido num país que se deseja policêntrico e mais equânime nas suas possibilidades de desenvolvimento. O mainstream de certa narrativa oficial começa a soar como um anátema.
     Já se passaram 40 anos de investimento privilegiado na cidade da Praia, e o resultado está à vista e não ilude ninguém: um urbanismo desordenado e caótico, com uma degradante cintura de bairros de lata, onde vivem famílias em condições sub-humanas, faltando saneamento básico, água canalizada, energia eléctrica etc., e onde grassam fenómenos de delinquência e criminalidade. Desta maneira, a pretensão de um Estatuto Especial é por si só o reconhecimento da incompetência das sucessivas governações autárquicas e da inépcia dos governos centrais. Daí que, em vez de se querer resolver os problemas com mais dinheiro e mais poder, impõe-se é uma séria reflexão sobre as suas verdadeiras causas, as quais estão seguramente associadas à falência do modelo de gestão e organização das nossas cidades e, sobretudo, à política centralista vigente no país desde o arranque da independência. Teria bastado a dispersão do aparelho do Estado e dos serviços públicos para evitar que a cidade da Praia atingisse um sobredimensionamento que é de todo inaceitável e injusto num país arquipelágico.
    De facto, há uma relação de causalidade entre os problemas da cidade da Praia e o centralismo político. Porque são precisamente os excessos de centralismo e a macrocefalia da capital os responsáveis pelo aprofundamento das assimetrias no território. Aliás, é todo este cenário que justificou o surgimento do movimento cívico para a regionalização do país, e que agora não pode deixar de se insurgir e indignar contra a intenção de acrescentar mais pedras e mais alcaides ao castelo do centralismo.
     É de gritante evidência que os centralistas e os Movimentos Pró-Praia estão nos antípodas da estratégia mais correcta para a resolução dos problemas nacionais e para eles tudo se resume ao agigantamento da capital, quando a sensatez política aconselharia o inverso, isto é, ao desmantelamento de uma capital a todos os títulos prejudicial à boa gestão político-administrativa do país. Há nos opositores declarados da regionalização e da descentralização muita hipocrisia e cinismo, com o propósito de desvirtuar as suas mais que comprovadas vantagens, quando os exemplos da sua aplicação no mundo mostram que não há incompatibilidade nenhuma entre a unidade nacional e as reformas que defendemos. Uma certa elite pensante e uma parte da classe política cabo-verdiana têm produzido muita desinformação, talvez por ignorância ou por má-fé, convencendo-se de que podem mistificar a questão junto das populações, já que a esta lhe falta informação objectiva e cultura política. Na realidade, uma regionalização bem conseguida, onde se aplicam os princípios de subsidiariedade, de discriminação positiva e de convergência social, política e económica no arquipélago, só pode resultar no reforço da unidade nacional.
     Amiúde, aparecem, com efeito, vozes a considerar que a regionalização pode fazer perigar a unidade e coesão nacional. Isto surpreende quando são as mesmas pessoas a encabeçar movimentos radicados na ilha de Santiago, como a “Associação Pró-Praia” e a “Voz de Santiago”, defendendo interesses bairristas, e, sem se darem conta, a pugnar para a construção de um estado dentro do próprio Estado, que é o que acontecerá com uma capital concebida para lá dos limites aceitáveis. Mas é nítido que o objectivo é produzir ruído de fundo para abafar a voz dos regionalistas ou então uma manobra de diversão, tudo muito oportuno no momento em que o governo se mostra favorável a um projecto de regionalização. Porém, há uma diferença abismal entre as motivações de uns e outros. Os regionalistas não se focalizam exclusivamente na sua ilha, como se Cabo Verde fosse apenas essa porção do seu território, olham para o país inteiro, por acreditarem que o progresso geral só é possível com aglutinação de vontades e observância daqueles princípios atrás enunciados.
     A este propósito, o Luiz Silva recorda que “a emigração dos Mindelenses na Holanda nunca distinguiu nenhum conterrâneo em função da sua ilha de origem, nem procurou alguma vez relevar o papel que a ilha de S. Vicente teve nesse processo. Criámos o caminho de libertação de Cabo Verde com o nome de Cabo Verde ostentado nas nossas intenções. Fomos norteados pelo espírito de comunhão, de partilha e entreajuda entre todos, bem patente no acolhimento fraterno aos que chegavam, no apoio no alojamento e no tratamento da documentação, para não referir que as nossas associações eram, sublinho, “cabo-verdianas”, como o grupo musical Voz de Cabo Verde. Esta ilha (São Vicente) sempre acolheu gente de todas as ilhas, os seus filhos ajudaram os seus irmãos de outras ilhas a viver dignamente na emigração, e quando a fome ceifava vidas em outras ilhas os lares abriram-se em S. Vicente para partilhar o pouco que havia. Muitos cabo-verdianos oriundos de outras ilhas aqui estudaram e tornaram-se cidadãos do Mundo, e isso deve ser reconhecido. Esta é a legitimidade moral que assiste à ilha quando chama a atenção para decisões políticas que não primam pela solidariedade nacional, equidade e justiça. Estranha-se assim que esta ilha não seja hoje tão bem-amada, como no passado, por gentes de outras ilhas. Até os que estudaram no Liceu de S. Vicente parecem ignorar essa fase da sua juventude, não valorizando o ambiente de camaradagem e bom convívio que encontraram nos mindelenses. Quem já se lembrou de uma iniciativa sobre o centenário do Liceu de S. Vicente que terá lugar em 2017, esta escola que formou gerações de quadros espalhados por Cabo Verde e pelo Mundo!? Agora surgem grupos Pró-Praia, como se tivessem razão para se queixar mais do que as ilhas da periferia, e no entanto os políticos e intelectuais não tomam uma posição para denunciar o que não passa de uma autêntica farsa. 
E contudo São Vicente continua ainda hoje aberto aos ventos do oceano acolhendo gente de todas as ilhas e de todo o Mundo que aí se sente como se na sua terra, sem nenhuma discriminação, muitos ascendendo a funções, tais como deputados, vereadores etc., reservadas noutros sítios a naturais, sem que isso cause qualquer engulho ao povo da nossa ilha. Mas continuamos de pé, caboverdianamente firmes,  e quando criamos um movimento de regionalização o nosso estandarte é o de Cabo Verde, não de São Vicente, porque o objectivo é pôr termo às assimetrias e lutar por um país com igualdade de oportunidades em todas as ilhas”.
     Enfim, Luiz Silva recorda que “a nossa caboverdianidade é inquestionável”, e com justa razão, atesta a legitimidade moral que assiste à ilha de São Vicente para denunciar as políticas que nas últimas décadas cavaram o fosso entre as ilhas e comprometem o futuro com que toda a população cabo-verdiana sonhou. 

(1)    WAHNON, Jonas, “Notas do Canhenho de um Caboverdiano”, Julho/1957
(2)    Idem, Ibidem 

Junho de 2016

José Fortes Lopes 

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