terça-feira, 20 de dezembro de 2016

A SITUAÇÃO E O ESTATUTO DA LÍNGUA PORTUGUESA EM CABO VERDE

José Fortes Lopes


    No artigo anterior, dissertei sobre a alienação e a dúvida generalizada que rodeiam o processo antidemocrático (no sentido abrangente, ou seja, associando os principais interessados, as ilhas e os seus falantes) que subjaz à oficialização do crioulo, onde são omissas as suas sérias implicações na vida do país. Tudo decorrendo no segredo dos deuses, na ausência de diálogo com a sociedade, parece evidente o propósito de silenciar os cabo-verdianos e perpetrar, custe o que custar, uma reforma/revolução mental em Cabo Verde, a pedido de ninguém, mas como reflexo do ego dos seus promotores e apoiantes políticos e associados, sob os auspícios de um desígnio em que não se revê, como se tem visto, a maioria esmagadora do país.
    Mostrei que é um direito inquestionável e inalienável, o de os habitantes de cada ilha exprimirem-se no seu crioulo materno, que negar este facto poderá conduzir a uma situação de consequências imprevisíveis e sempre perigosas, configurando um acto de violência cometido pelo Estado a unificação dos crioulos por via legislativa e através de “engenharia linguística” e a escolha do crioulo padrão por motivos meramente políticos ou eleitoralistas. Em suma, esta aventura, a concretizar-se no seu pleno, seria a “facies” reveladora de uma política abusiva e autoritária de matriz claramente centralizadora. Tendo em conta estas premissas, julgo que é legítimo que o Estado de Cabo Verde reconheça a diversidade linguística do país e acate as reivindicações dos seus habitantes, perante uma realidade inquestionável: a existência de crioulos de Cabo Verde e o carácter regional do país.
    Daí que a Regionalização seja o ponto de partida e de chegada deste complexo processo. As eventuais negociações, a decorrerem no âmbito da regionalização, deverão consagrar aquele acervo de direitos em matéria linguística, um requisito que deverá ficar plasmado na futura e revista Constituição de Cabo Verde. Também referi os perigos de lançar Cabo Verde na aventura de uma precipitada adopção do uso do crioulo como futura ferramenta de trabalho e do simultâneo desincentivo do uso corrente do Português no país. Existem riscos de ordem diversa que os poderes políticos, e designadamente quem pensa e decide neste país, deveriam ponderar antes de decidirem em matéria tão delicada e fulcral para o futuro do país e para a harmonia e o bem-estar psicológico do nosso povo.
    Com efeito, bem mais perigoso é ainda o risco de uma alienação ou de um cada vez maior afastamento de Cabo Verde da língua portuguesa. Como anotei, num país já por si mal falante desta língua, o mesmo equivaleria a votar a maioria da população a uma situação real de “indigenato”, com pessoas incapazes de se exprimirem correctamente em nenhuma língua, ao passo que as elites minoritárias continuarão cada vez mais a ter acesso e contacto constante com o Português, a única língua estruturada e com uma riqueza léxica suficiente (pelo menos na presente conjuntura linguística), capaz de proporcionar actualmente produção intelectual, literária, científica e um pensamento abstracto estruturado, para além de permitir e facilitar a ponte para as línguas dominantes como o francês, o inglês ou o espanhol. Por motivos diversos, induziu-se na sociedade a sensação, se não o medo, de que usar o português como língua corrente seria como cometer um crime de lesa-língua e lesa-pátria. Na questão do português é importante denunciar o enorme logro em que os cabo-verdianos podem cair, mercê de desinformação ou de uma pedagogia baseada num nacionalismo bacoco, uma vez que não passa pela cabeça de ninguém ser contra a dignificação do crioulo ou negar o seu lugar na matriz identitária das nossas ilhas. Mas quem poderia ser contra os crioulos falados no arquipélago de Cabo Verde? Haverá inimigos do crioulo ou de Cabo Verde, como pretendem os Fundamentalistas? Esta visão maniqueísta de um mundo dividido entre bons e maus não é boa para um debate que se quer sereno.
    É neste contexto do debate sobre o crioulo que em Novembro de 2011 o Primeiro-Ministro (PM) de Cabo Verde, José Maria Neves, “fez história”, ao proferir um discurso perante a 66ª plenária da Assembleia Geral das Nações Unidas, na sua “língua materna”, ou seja, no seu “crioulo materno”. Os ditos Fundamentalistas só podem ter-se regozijado com esse gesto na medida em que poderão ter visto nele um sinal positivo para a realização definitiva dos anseios: a oficialização do “crioulo”  e o fim aparente do domínio do português como língua de expressão oficial em Cabo Verde. Esse acontecimento é para eles, sem dúvida, um “marco histórico”. Todavia, não deixou, certamente, de constituir uma forte mensagem política “urbi et orbi” para destinatários bem definidos: a comunidade lusófona e “certos crioulos” (como se diz em crioulo de S. Vicente, “quêls que sons”). Estaria o PM com esse discurso a anunciar o nascimento de um “novo” Cabo Verde, o seu, na  refundação linguística da sua  visão fundamentalista?; terá ele discursado no dito crioulo oficial ou numa variante do crioulo?  Ou será que o discurso não passou de “fogo de vista ”, de um acto de pura propaganda para “crioulo ver”, ou mesmo um recado para dentro do seu país? Estas perguntas são legítimas para os cabo-verdianos e merecem esclarecimentos. Como ninguém sabe ou percebe em que consiste e para que serve a oficialização do crioulo, desconhecendo-se o que está a passar-se nos bastidores deste processo, a dúvida paira no ar. Mas não deixa de ser intrigante que num preciso momento em que se fala do reforço da língua portuguesa no mundo, nomeadamente na área diplomática, o PM apareça com semelhante tirada pouco diplomática. Este discurso deverá ter apanhado de surpresa os diplomatas da lusofonia presentes nas Nações Unidas, mas também poderá ter sido visto como simples exibicionismo pacóvio não merecedor de atenção.
    É que é no mínimo estranho e contraditório que Cabo Verde se pretenda disponível para iniciativas globais ou ofensivas diplomáticas de rosto lusófono e transmita num fórum internacional como a Assembleia das Nações Unidas um sinal de ruptura ou demarcação face ao elemento fundamental agregador do espaço lusófono: a língua portuguesa. Pois a questão que se coloca é se a comunidade lusófona, de que pretende Cabo Verde fazer parte, terá levado a sério a atitude do chefe do governo cabo-verdiano, quando se sabe, a acreditar nas notícias e comunicados circulando na imprensa, que Cabo Verde está fortemente associado a estratégias, às vezes mesmo “liderando” diplomaticamente iniciativas, de afirmação da lusofonia no mundo, que já não é só defendida por Portugal e Brasil, como também por todos os países da CPLP, principalmente Angola. Certamente não passará pela cabeça do mundo lusófono ver o Eduardo dos Santos a discursar naquela assembleia em umbundu ou o Armando Guebuza a fazê-lo em emakhuwa, respectivamente suas línguas nacionais maioritárias. Esta é a questão. Estas contradições são flagrantes e só podem levar ao descrédito da voz Cabo Verde no mundo. Convém também realçar que neste aspecto o PM não foi seguido nem pelos diplomatas cabo-verdianos, nem pelo Presidente da República, que continuam todos a discursar na língua de Camões, como se nada tivesse acontecido. Por outro lado, se com a sua patética epifania nacionalista o PM pretendeu estimular o orgulho dos cabo-verdianos, o efeito foi o inverso por dois erros graves em que incorreu: esqueceu-se de que, ao falar na língua da sua ilha natal, que não é a de grande parte da nação cabo-verdiana, lançou a discórdia e a divisão no seio desta, até porque não está ainda definido o crioulo padrão e o PM não foi mandatado em circunstância alguma para fazer unilateralmente essa escolha; cobriu-se de ridículo ao patentear naquela assembleia uma atitude de paroquialismo bacoco e contrário ao espírito que se pretende fortalecer no seio da lusofonia.
    Com efeito, é preciso recordar que os angolanos, por exemplo, e conforme se aduziu nos exemplos atrás citados, apesar de terem todos os seus dialectos nacionais, não se envergonham de o português ser a sua língua oficial e ferramenta indispensável e incontornável para a comunicação. O resultado da atitude aleatória cabo-verdiana é, hoje em dia, a língua portuguesa quase ter desaparecido do quotidiano do país, transformando-se numa língua desconhecida da maioria, mal dominada mesmo por pessoas altamente escolarizadas, ficando reservada a elites cultas, diplomatas, e usada exclusivamente na representação política de topo ou em festividades oficiais. Esta é a realidade de um país, dito lusófono ou de língua oficial portuguesa, onde não há acesso à literatura, a jornais, a programas televisivos de qualidade, e onde a cultura está ainda num estado incipiente.
  Constitui na verdade, e sem dúvida, um problema gravíssimo, um impedimento ao desenvolvimento da nossa terra, o péssimo domínio pelos cabo-verdianos do português (e talvez de outras línguas), o que pode ser imputado a um deficiente sistema de ensino (colonial e nacional, ou ambos). Todavia, se antes da independência podia-se considerar que pessoas minimamente escolarizadas e as elites falavam correntemente o português, é um facto evidente que com a independência o domínio desta língua veio a degradar-se continuamente, chegando a uma situação crítica. Aqui deve-se destacar o papel das políticas contraditórias. É possível que se esteja a pagar os excessos de um radicalismo assistido no pós 25 de Abril, e que durou tempo suficiente para produzir efeitos maléficos. Ninguém saberá ao certo. Mas outra coisa não era de esperar quando, ao longo de 35 anos, se olhou de soslaio para o português, encarando-o como língua opressora de dominação colonial, e se continuou, no entanto, a usá-lo em todos os actos oficiais, ao mesmo tempo que se elegia o crioulo como o instrumento, por excelência, de libertação de um “povo dominado linguisticamente”, mas que paradoxalmente continua oprimido linguisticamente pelos seus “libertadores”. Esta ambivalência, tendo durado todo este tempo, não podia ter conduzido senão a resultados catastróficos. É triste ter de reconhecer que Cabo Verde é hoje dos países dos PALOP onde o desempenho da língua portuguesa é o pior de todos, comparando populações da mesma categoria socioprofissional. É um problema cuja análise e resolução não podem ser negligenciadas, pois as implicações serão muito sérias no futuro do país.

Em próximo artigo intitulado “A importância da língua nos desafios do mundo global”, concluiremos as nossas reflexões sobre este tema.

14/09/2012

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