Tenho defendido ao longo de uma série de artigos, a necessidade da transição do centralismo para um sistema político administrativo mais democrático para Cabo Verde.
O centralismo no mundo moderno do Sec. XXI é uma forma arcaica de governo. Cabo Verde querendo inserir-se no concerto das nações democráticas, mais civilizadas ou mesmo ‘mais progressistas’, deve abolir esta forma de governo e optar por modelos muito mais adaptados à contemporaneidade, seguindo uma organização política e administrativa do país similar à da maioria das democracias mais avançados do mundo. A regionalização não é um apanágio da direita liberal ou da esquerda reformista. Em França após o falhanço do referendo de De Gaule, foi a ala moderada socialista que defendeu há 30 anos no parlamento, o projecto de Regionalização para aquele país contra uma direita conservadora, hoje mais reformista (1,2,3). Os socialistas franceses explicavam, nos anos 80 do século passado, da seguinte maneira a reforma: « A centralização tal como existe actualmente em França constitui uma forma de governo, uma estrutura de organização política arcaica, paralisante, ultrapassada, que não responde às exigências da vida moderna e da competitividade entre as nações evoluídas …Não queremos (nós governo) mais exercer tutela sobre as colectividades eleitas ».
Um regime centralista caracteriza-se por uma situação de ausência parcial ou total de delegação de competências políticas e de recursos (humanos, económicos e financeiros) do Estado Central para as comunidades regionais ou locais, que ficam em situação de total subordinação e dependência. Sendo as decisões tomadas no vértice da pirâmide do poder (em geral concentrado num grupo de pessoas ou numa pessoa), o centralismo em democracia tem muitas analogias com o Centralismo Democrático, em que as decisões descem do topo da pirâmide para a base (nunca sendo discutidas na base, como teoricamente pretendiam os seguidores desta doutrina). O poder local é, pois, o pilar dos regimes democráticos, serve de elo de ligação entre o cidadão e o poder central. Assim num sistema democrático descentralizado, a cadeia do poder/decisões e as interações entre o poder central e o poder local, obedecem, em geral, a uma estrutura horizontal/plana. Em vez de uma relação de subordinação, estabelece-se uma cooperação/colaboração na tomada de decisões, procurando sempre sinergias entre os diferentes poderes/parceiros, com os quais não se está nem em competição, nem em guerra. Por isso o centralismo nas democracias pouco consolidadas, como é o caso Cabo Verde, limita o exercício da democracia real e a percepção que têm os cidadãos do Estado: um órgão distante, absoluto e todo-poderoso. O centralismo na prática funciona como uma entrave, um instrumento para limitar ou despojar dos seus direitos fundamentais, e em muitos casos da sua dignidade, o poder local e os cidadãos. Estes sentem-se impotentes perante a máquina do Estado, que, em geral, não presta contas a ninguém, carecendo de controlo e de escrutínio na sua acção. O cidadão é deixado à mercê dos humores da todo-poderosa burocracia central sem rosto, e nem sempre com a competência requerida ou adequada. Tendo o mesmo a sua vida quotidiana tão complicada, fica mais fragilizado perante a máquina do poder, tornando-se progressivamente cidadão de 2ª (em relação aos privilegiados do sistema) pela percepção da sua impotência. Num sistema centralista, o poder não está coagido a cumprir com as suas promessas e obrigações, fá-lo como e quando bem lhe entender ou lhe apetecer: estamos no domínio da arbitrariedade. Este sistema uma vez instalado tem a sua dinâmica própria, não dependendo de uma mais ou menos democraticidade de um dado partido no poder ou de uma determinada liderança. Por isso seria utópico pensar que em vez do mau centralismo do PAICV, teríamos o bom centralismo do MPD, uma vez no poder. O centralismo é pois intrinsecamente mau, independentemente dos partidos no poder, é a máquina ideal para produzir passividade social, conformismo e subdesenvolvimento, muito confortável para os autocratas, que proliferam no terceiro mundo e mesmo no 2º Mundo. Nestes regimes a fronteira entre uma ditadura democrática e uma autocracia de um grupo (em geral eleito pelo povo) é ténue. Em contrapartida, no 1º mundo o problema do centralismo põe-se com menos acuidade, pois a capacidade de manipulação da sociedade pelo poder é menor. Nestes países, o próprio sistema democrático engendrou contrapoderes e sólidas instituições democráticas, uma opinião pública apoiada numa imprensa privada ou independente, e, mais importante, uma parte significativa da elite independente dos poderes.
Em Cabo Verde o centralismo reveste outro aspecto também pernicioso, que se prende com a sua carga ideológica. O PAIGC partido da independência e que alcançou o poder em 1975 praticava internamente o Centralismo Democrático, defendeu a necessidade de uma gestão centralizada das ajudas internacionais para construir o recém-criado estado, e não escondia a sua apetência para uma economia socialista planificada e centralizada. Por outro lado, definindo-se como um partido de massas, ditas populares, cedo percebeu que poderia encontrar principal base de apoio na ilha mais populosa, supostamente discriminada em relação às outras ilhas durante o colonialismo. Assim não escondeu que estava animado de uma visão para um novo Cabo Verde, que consistia em romper com o Cabo Verde colonial (cujo paradigma era S. Vicente), rendendo, no seu entender, mais justiça social política e económica em Cabo Verde, através de uma redistribuição dos recursos humanos e financeiros pelo país. Mas paradoxalmente o Centralismo ancorou-se definitivamente com o advento da democracia, com a lei da maioria e dos números, uma prática que levada ao seu extremo pode entrechocar com os equilíbrio tradicionais, a natureza e a diversidade arquipelágica do país. Criaram-se, assim as condições ideais, para o nascimento de numa visão fundamentalista no país, uma narrativa demais partidarizada e ideologizada. Doravante em Cabo Verde existiria uma ilha-capital, a do Cabo Verde dos primórdios colonização, e não havia mais lugar para 2ª ou 3ª ilha, tudo deveria estar nivelado por baixo. Abria-se assim o caminho para a defesa de utopias marginais, tais como regresso às origens quinhentistas da mítica da fundação de Cabo Verde, ou mesmo o isolamento linguístico de Cabo Verde, o único país de CPLP onde não se falaria o português, a língua de comunicação neste espaço e nas relações internacionais. Temos aqui uma situação em que utopia nasce do centralismo que por sua vez a alimenta.
É no campo socioeconómico que a ideologia do centralismo tem efeitos mais nefastos. Ela desembocou num absurdo social e económico, impensável há uma ou duas gerações: todos os cabo-verdianos têm, por força de um ideário partidário, de colaborar na construção de uma “agenda da transformação” revolucionária desfocada dos tempos modernos, na criação de um novo paradigma determinado por uma estreita e perniciosa visão ideológica. Nesta perspectiva, todos os recursos humanos económicos e financeiros tendem a privilegiar a capital de Cabo Verde, Praia/Santiago: a ilha de todas as oportunidades. Ao mesmo tempo, as ilhas hoje consideradas periféricas, nomeadamente as do norte, são condenadas a uma expiação eterna por não se encaixarem nesta visão utópica. Resultado um nivelamento por baixo no arquipélago, a 2ª ilha desaparece do mapa político do país. Nesta óptica, o ímpeto na construção deste ‘Estado-Nação’ centralista é assim impresso por pessoas que ignoram ou desprezam a verdadeira história de Cabo Verde, interpretando à sua maneira e conveniência política a sua origem quinhentista e o percurso evolutivo. É esta visão de Cabo Verde que precisamente põe em risco a verdadeira unidade nacional, que alegam defender, ao não acautelar valores fundamentais que sempre caracterizaram o país durante séculos e que hoje fazem parte de conquistas da humanidade civilizada: a diversidade, a interdependência, a complementaridade e a subsidiariedade.
Para Alte Pinho (4), é o próprio centralismo que põe em causa a integridade do país:” não é a regionalização que põe em causa a integridade nacional, antes, sim, as assimetrias sociais e regionais que, por exemplo, no caso de São Nicolau, colocam a ilha no primeiro lugar do ranking do desemprego em Cabo Verde e fazendo dela uma das regiões mais isoladas do país. Ou seja, a política centralista é que tem vindo a pôr em causa a unidade nacional, gerando fenómenos de desenvolvimento a várias velocidades, colocando as chamadas ilhas periféricas na cauda do progresso e do desenvolvimento social.”
Em relação a esta questão os recentes editoriais do Expresso das Ilhas (5,6), o principal jornal afecto ao partido da oposição, o MPD, vêm dar razão a algumas recriminações que temos tecido ao actual regime cabo-verdiano. Como vemos denunciando há muito tempo, o regime tenta através de operações mediáticas e muito politicamente correctas, operar lavagens cerebrais, reinventando e reescrevendo diversas versões da história de Cabo Verde, com uma visão por demais provinciana, partidarizada, ideologizada e fracturante. Aspectos e eventos irrelevantes, por serem muito locais e situados no tempo e no espaço, são generalizados para todo o país, transformando-os em eventos de dimensão épica, para serem posteriormente utilizados, como no tempo da Rússia Soviética, na construção de uma nova narrativa histórica. O problema mais grave é o da ideologização e instrumentalização política do ensino, como denuncia o jornal (5): ‘Em Cabo Verde toma-se como normal recorrer ao sistema de ensino para se passar as mais diferentes mensagens. Arregimentam-se crianças em marchas pelas ruas a favor de causas as mais diversas. Matérias que dividem a sociedade como é caso da adopção do Alupec e do ensino do crioulo são unilateralmente forçadas no ensino pretendendo com isso acabar com todo o debate e impor uma decisão única para a matéria. O sistema educativo é visto no essencial como um aparelho ideológico do Estado através do qual preferências políticas, interpretações da história e agendas partidárias são passadas para as camadas mais influenciáveis da sociedade – os seus jovens e crianças. Resistências socias a isso não são muitas. Persiste a tentação de se moldar as novas gerações no ideal do homem novo. Não se apropriou ainda o princípio constitucional de que o Estado não deve impor opções políticas, filosóficas ou estéticas aos cidadãos da república.’ (continua)
Bibliografia
1- JOSÉ FORTES LOPES: A Regionalização francesa (1980), um processo inspirador para Cabo Verde
http://www.jsn.com.cv/index.php/opiniao/584-jose-fortes-lopes-a-regionalizacao-francesa-1980-um-processo-inspirador-para-cabo-verde
2- La Régionalisation, une histoire de plus d’un demi-siècle. Association des Régions de France (A.R.F.) http://www.arf.asso.fr/histoire-du-fait-regional.
3- JOSÉ FORTES LOPES: A Regionalização: o Adiamento de uma exigência e de uma urgência http://www.jsn.com.cv/index.php/opiniao/658-jose-fortes-lopes-a-regionalizacao-o-adiamento-de-uma-exigencia-e-de-uma-urgencia
4-http://www.jsn.com.cv/index.php/sao-nicolau/1809-regionalizacao-em-debate-os-novos-caminhos-para-cabo-verde
5-http://www.expressodasilhas.sapo.cv/opiniao/item/43043-editorial-deixar-de-instrumentalizar-a-educacao.
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