Cesária Évora : da periferia do Mindelo à periferia de
Paris
A cidade-porto do Mindelo, antiga Vila Leopoldina, foi
elevada ao estatuto de cidade em 14 de Abril de
1874. O seu desenvovlimento se deveu aos ingleses que criaram
várias companhias de carvão e influenciaram a vida social, cultural e
desportiva da cidade. Mas a concorrência dos portos de Dakar e Las Palmas,
mais bem apetrechados, e as crises económicas, como a de 1929, e a falta
de investimentos da potência colonial bloqueram o seu desenvolvimento. Até
hoje se luta para reconquistar o prestígio de outrora que fez do Mindelo o
ponto de encontro de várias civilizações e culturas, com a sua elite anglófona
e onde o desporto, em especial o futebol, o golf e o criket, mas também o gin
tonic faziam parte do seu quotidiano.
A cidade do Mindelo, com o seu centro à volta do Palácio do
Governo, tinha na sua periferia várias zonas habitadas por
trabalhadores das companhias inglesas, vindos especialmente de Santo Antão e
São Nicolau, em alojamentos sociais criados pelos ingleses. E foi na periferia
do Mindelo, na zona denominada Lombo, que nasceu a nossa Cesária
Nacional em Agosto de 1941, cujo pai era músico e amigo pessoal de B.Leza, um
dos maiores compositores nacionais e de que Cesária foi uma das melhores
intérpretes.
Esta zona suburbana tinha o seu pequeno
comércio, as suas pequenas casas de costura, os seus bares, que à noite
acolhiam os músicos mindelenses, das outras ilhas e estrangeiros à volta do
Porto Grande. Tudo o que era vida cultural e social da ilha começava
por se manifestar no Lombo.
Foi ali que nasceram militantes
associativos, que se evidenciaram na criação de vários grupos
carnavalescos, como também os maiores artistas do teatro e da
música caboverdianas. Ali nasceu B.Leza, poeta e músico, que
iria verdadeiramente dar uma nova estrutura à morna, nascida na Boavista,
criada na ilha da Brava com o mestre Eugénio Tavares e que se tornou adulta em
São Vicente. A presença de Eugénio Tavares em São Vicente a partir de 1923,
assim como do guitarrista Luis Rendall, terá sido importante no
enrequecimento da morna caboverdiana, tanto ao nível da escrita do crioulo
caboverdiano como na intrdução de novas modalidades sonoras
e temáticas baseadas na realidade sociológica das
ilhas. B.Leza, que foi aluno do Luis Rendall, pertenceu também ao
grupo Claridoso que em 1936 fundava a revista Claridade, que foi o brado da
Independência cultural de Cabo Verde. É o compositor mais cantado dentro
e fora de Cabo Verde e tem em Cesária Évora uma das suas maiores intérpretes.
Ali no Lombo também nasceu e viveu Gregório Gonçalves
« Ti goy », compositor de coladeras e autor de várias peças de
teatro. Pelas suas mãos passaram vários jovens artistas como o menino prodígio
Longino Baptista, cantor, dançarino e comediante. Em casa de Gregório Gonçalves
reuniam-se os jovens de todos os subúrbios do Mindelo. Ali se criou vários
grupos carnavalescos como Flores do Mindelo e Lombiano, e grupos de teatro. Era
também o ponto de encontro dos musicos
para todos os festejos e até para se preparerem para tocar nos enterros. Todas
as oportunidades eram aproveitadas para se fazer uma morna ou uma coladera
brejeira. Essa coladera que devia evoluir na emigração e se transformar no
arauto da luta pela Independência. Gregório Gonçalves foi na verdade aquele que
melhor se serviu da coladera para denunciar os problemas da sociedade. Cesária
Évora foi a sua voz preferida de entre as várias que dirigiu e certamente a sua
maior intérprete. Gregório Gonçalves fundou um conjunto musical que permitiu
lançar vários cantores e músicos.
Anualmente se organizavam em Mindelo peças de teatro,
nomeadamente nos clubes Castilho e Amarante onde se destacavam o Valdemar
Pereira, Piano e os irmãos Evandro e Mário Matos, Germano Gomes, bem como espectáculos
de dança e de música que davam um colorido especial à
ilha. E muitos desses espectaculos se passavam no cinema Eden Park,
graças à simpatia e a benvolência dos irmãos Marques da Silva. Desses jovens
artistas, não se pode deixar de citar a
bailarina Manuela de Nha Concha, o dançarino Mateus e o menino
prodígio Longino Baptista, a que já me referi anteriormente.
A infância e a adolescência de Cesária Évora passaram-se
ali no Lombo, onde fez a escola primária no Orfanato Mota Carmo que dava uma
boa educação às jovens e onde também se aproximou de grandes músicos e
compositores mindelenses.
Nos fins dos anos cinquenta do século passado, ela começa a
cantar com uma voz sensual, exprimindo um sentimento que vinha do
fundo da sua alma.
Mas sem dúvida, uma pessoa vai ser determinante na educação
vocal de Cesária : trata-se de Eduardo Rodrigues, conhecido
por “Eduardo de Nhô Jom Xalino”, um excelente cantor e guitarrista,
oriundo de uma família de músicos famosos do Mindelo, inclusivé o próprio pai
que fabricava os seus instrumentos musicais. Ora na rua de Moeda, ora na rua de
Craca, ora no Lombo, ela era acompanhada pelo guitarrista Eduardo e amigos como
o Bana, um outro grande cantor que deve muito ao Eduardo de Nhô Jom Xalino.
Certo, que esses anos cinquenta são anos de secas e
emigração forçada para São Tomé. E é preciso referir que nessa época
surgem algumas mornas contestárias de Lela de Maninha
(como “São Vicente de Longe” cantada por Cesária Evora), mas também de Jotamonte
e Abílio Duarte a denunciarem o abandono do Porto Grande pela potência colonial
e a emigraçao forçada para São Tomé. Mas a criaçao musical que marca esta época
é “Sodade” da autoria dum ex-emigrante sãonicolense, que retrata as
condiçoes dolorosas desta emigraçao forçada. Na voz de Cesária esta morna
deu a volta ao mundo, ficando indelevelmente ligada ao seu nome.
Perante essas circunstancias, um grupo de Mindelenses
decidiu sair clandestiamente de Mindelo à procura do pão para a boca das suas
famílias e amigos. São dez estes apostólos da emigração que desembarcam no
porto de Roterdão, de onde vão lançar o apelo para a emigração para a
Holanda e que recebe a maior adesão de todas asc lasses sociais em Cabo Verde.
São eles que estão na base nas transformações económicas, culturais, sociais e
políticas em Cabo Verde.
Um grande número de músicos, amigos e colegas de Cesária
Évora, também seguem para a Holanda, como Djosa de Benarda, Frank Cavaquinho,
Djosinha, directamente de Cabo Verde, enquanto que Luis Morais, Morgadinho, Toi
de Bibia, Jean da Lomba e Ban a passam por Dakar antes de chegarem a Roterdão.
E ali nasce o conjunto “A Voz de Cabo Verde”, um verdadeiro sonho de Frank
Cavaquinho.
Essa presença caboverdiana na Holanda e que mais tarde se
estende a todos os cantos da Europa, divulga e promove a música
caboverdiana graças à criação da casa de Discos Morabeza . Com as
remessas dos emigrantes e de novos instrumentos musicais, o panorama musical
também muda em Cabo Verde. As actividades culturais no Lombo e outros subúrbios
do Mindelo também evoluem com mais música e serenatas permanents. A
voz da Cesária surge triunfante nessas noites caboverdianas e o seu nome
ultrapassa os limites do Mindelo e das ilhas para chegar às comunidades
caboverdianas. Começa por participar em gravaçoes nas rádios e em
manifestações culturais. Tudo o que exprime um sentir caboverdiano encontra na
Cesária a sua verdadeira expressão.
Preferindo cantar com os pés descalços, recebe do chão que
pisa, com muito respeito, o ritmo e a cadência musical. Foi ali no
Lombo, em 1964, num pequeno estabelecimento comercial pertencente ao
comerciante João Mimoso, que Cesária Évora gravou o primeiro single
de 45 tours. Porém, a voz pura e candente teve de esperar mais de
trinta anos para gravar novos discos que a levaram a conhecer todos os palcos
do Mundo. Mas entretanto as suas gravações nas rádios de São Vicente (Radio
Barlavento e Radio Club) iam passando de mão em mão até que foram reunidas num
CD, intitulado Radio Mindelo, e que é o maior testemunho musical de Cesária
Évora, na sua juventude.
Se os anos sessenta, os melhores da nossa emigração,
permitem a Cesária viver da sua voz, com a Independência a morna vai ser
marginalizada, face a uma ideologia que previlegiava as músicas de origem
africana. O grande cantor Bana é obrigado a emigrar e abre um restaurante em
Lisboa, onde a morna se refugia. Ali será o templo da
morna em Portugal, onde todos os emigrantes de todos os cantos do mundo vão
escutá-la. E é Bana que vai convidar Cesária a
deslocar-se a Portugal para gravar o seu primeiro LP. As portas do
sucesso estão agora abertas e ela pode regressar ao seu Mindelo, onde retoma a
vida noturna nos bares e nos espectáculos, com muito apoio dos emigrantes de
férias em Cabo Verde que a solicitam em todas as noites caboverdianas.
Foi num desses espectáculos, em Mindelo, que ela
encontrou dois jovens emigrantes em França, Orlando Juff e José da Silva que a
convidaram a fazer uma digressão na França e na Holanda junto das nossas
comunidades, onde é bem acolhida é apoiada. É aquilo que podemos
designar por uma viagem da periferia do Mindelo para a periferia de Paris.
Canta nos fins de semana e durante a semana visita as amigas. Recebe
muitos presentes, leva encomendas para todos os amigos e não se esque cendo dos
amigos mais pobres. Fazem-se colectas em seu benefício em todos os
espectáculos, para além do cachet que recebe normalmente. Tem o
apoio das associações caboverdianas que organizam festas de
apoio onde vende os seus discos. Nenhum artista caboverdiano recebeu
tantas manifestações de solidariedade nas comunidades caboverdianas da França,
da Holanda, Estados Unidos, nomeadamente.
Ninguém poderia imaginar o percurso que a sua vida iria
conhecer a partir da França. Primeiramente
era acompanhada do Luis Morais, que ao tempo era
professor liceal de música e aproveitava as férias para se deslocar à emigraçao
caboverdiana para visitar amigos e fazer alguns espectáculos. Aqui em Paris ou
na Holanda, o Luis recrutava outros músicos para acompanharem Cesária que
interpretava músicas de autores caboverdianos da diáspora parisense, como
Morgadinho, Nando da Cruz e Teofilo Chantre, temas que serão incluídos em todos
os albuns editados pela Lusafrica.
Mas a partir de 1992, com o sucesso
do seu quarto disco “Miss Perfumado” sob a direcção de Paulino Vieira, ela
rompe com o amadorismo que sempre a distinguiu dos outros artistas
caboverdianos, para assumir uma verdadeira carreira internacional que a leva a
quase todos os palcos do Mundo, divulgando a música caboverdiana e dando também
a conhecer Cabo Verde e a sua cultura. Os jornalistas parisienses
descobrem esta nova cantora que procuram assimilar a Billy King e que tem a
consciência do seu percurso como cidadã caboverdiana e intérprete de mornas
que defende em todo o mundo.
A sua simplicidade era impressionante. Apesar do sucesso e
de melhores condições de vida continuo fiel aos seus amigos aos quais passou a
prestar a sua solidariedade.
Em França demonstrou sempre o seu reconhecimento aos
músicos e amigos que a acolheram e ajudaram nos primeiros passos da sua arreira
internacional. Sem dúvida foi a artista caboverdiana mais conhecida em França e
no mundo, tendo aberto as portas a uma nova geração de artistas que aliás
disputam a sua sucessão. Numa sondagem feita na região parisiense, mais de dois
terços dos alunos conheciam a cantora caboverdiana Cesária Évora.
Quando entrou no ciclo das “tournées” não parava. Em
2007, ela adoece na Austrália e é operada das coronárias. E nesta altura,
com mais de sessenta anos, ainda consegue manter o ritmo das torunées durante
cinco meses sem parar. Uma jornalista do jornal Le Monde interrogava
se não era a altura de ela suspender a carreira, pois considerava que
Cesária levava uma vida de muitos sacrificios, o que já não facilitava qualquer
progresso nas interpretações. A lenda viva de Cabo Verde
queria continuar mas a doença já tinha tomado conta do seu corpo sem no entanto
tirar-lhe a vontade de subir ao palco.
Em 2012 voltou a Paris para recomeçar um ciclo de
“tournées” pelo mundo mas sem forças para continuar teve de ser hospitalizada.
Mas quando se sentiu melhor quiz voltar para a sua terra como se estivesse a
escolher de ir morrer na sua ilha, no hospital junto ao Lombo onde nasceu.
Teve enterro nacional. Nas comunidades caboverdianas
a sua morte foi sentida porque ela resumia em si todo o drama do homem
caboverdiano, obrigado a expatriar-se para servir Cabo Verde. O povo do Mindelo
e os artistas nacionais prestaram-lhe as devidas honras acompanhando
com as mornas que ela cantava o percurso da sua casa ao cemitério, onde
diariamente chegam admiradores de todo o mundo com coroas de flores.
O Governo de Cabo Verde atribuiu o seu nome ao Aeroporto de
São Vicente e uma estátua dela foi levantada junto ao Aeroporto.
A história continuará a interrogar-se sobre a personalidade
desta figura mindelense, nascida no meio modesto e que viveu modestamente com o
coração aberto para o seu povo. Ela fica, para além de grande cantora de
mornas, um exemplo da solidariedade activa sem a qual a nação caboverdiana não
teria forças para lutar para a sua sobrevivência. Heroina no verdadeiro sentido
do termo, a nossa Cise Nacional foi o orgulho também dos emigrantes
que, graças ao seu exemplo de tenacidade e patriotismo, a consderam
como o porta voz da nossa emigração ao fazer da temática da emigração o seu
combate.
A história cultural de Cabo Verde inclina-se perante o
percurso desta cantora mindelense que com tenacidade defendeu a
morna –expressão máxima da nossa caboverdianidade.
Muito obrigado pela vossa atenção.
Paris, 30 De Abril de 2013
LUIZ SILVA
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