CABO VERDE: REGIONALIZAÇÃO E EMIGRAÇÃO
Um texto de Luiz Silva
Todos os partidos
políticos já se pronunciaram a favor da Regionalização em Cabo Verde. Estão
todos convencidos de que a realidade geo-económica e cultural das nossas ilhas
não se coaduna com o centralismo político e económico do Estado imposto pelos
governos sucessivos após a Independência do país. O movimento regionalista
aparece assim numa procura de reinvenção de Cabo Verde, com um modelo político
e económico onde todos os Cabo-verdianos se sintam parte integrante da Nação
cabo-verdiana e não excluídos, como sucede com uma franja do povo das ilhas e
também da diáspora.
Será que a
Regionalização poderá contribuir para pôr termo às assimetrias económicas,
sociais e culturais resultantes do centralismo do Estado, que somente provocou
desequilíbrios internos, bairrismos, alienações e até falsidades
históricas? A Regionalização será para os emigrantes uma oportunidade de
terem voz e palavra na gestão política e económica de Cabo Verde, dada a sua
participação na construção do país?
Uma leitura histórica
dos combates dos emigrantes por Cabo Verde, desde há mais de dois séculos,
feita com clareza e profundidade, confirma que a contribuição dos emigrantes
não se limita simplesmente às remessas. A sua contribuição nos aspectos social
e cultural foi muito importante. Os emigrantes cabo-verdianos, para além de
serem potenciais investidores, são também portadores de uma grande experiência
política vivida em vários países do mundo, onde o regionalismo e o federalismo
imperam com muita eficiência e com resultados benéficos para o país. A
emigração poderia ser mais uma região mais ao largo, exigindo também uma
política especial no plano regional e dependendo da ilha ou região de origem.
Origens do movimento regionalista em
Cabo Verde
O movimento regionalista em Cabo Verde não é de hoje: sob influência do
movimento regionalista nordestino brasileiro, nasceu em Cabo Verde, nos
princípios do século XX, um movimento regionalista cabo-verdiano liderado pelo
grande poeta-compositor de mornas e homem político Eugénio Tavares (Brava -
1868/1930), sem dúvida o maior militante da nossa emigração para a América,
como também aquele que denunciou, com elevada coragem, a emigração para São
Tomé e Príncipe. Sobre o regionalismo escrevia Eugénio Tavares no n° 205/1915
da Voz de Cabo Verde, num artigo intitulado “Usurpação da Função Pública: “Regionalismo é um sentimento de dignidade.
Logo, excessos regionalistas, dado aqui vicejassem, mais não podiam ser que
excessos de dignidade. E excessos de dignidade, mesmo quando prejudicam, honram.”
Ainda sob influência do
movimento regionalista nordestino surgia em 1936, em São Vicente, a revista
Claridade que, ao nível da literatura e do ensaio, definiu as linhas mestras da
caboverdianidade, hoje mundialmente reconhecidas. Aliás, foi o antigo
Presidente da República de Cabo Verde, Aristides Pereira (1924/2011), que em
1986, no Simpósio da Claridade, considerava a essa revista como o símbolo da
verdadeira independência cultural de Cabo Verde.
Mas após a
Independência, o partido único, encostado a uma filosofia que excluía a
diversidade de opiniões e os emigrantes da Nação, não permitia qualquer
veleidade regionalista para aqueles que viviam no próprio país. Aliás, a ideia
de alguns comerciantes mindelenses de se organizarem em sindicato fora dos
cânones do partido único levou alguns patrícios às masmorras do Quartel de João
Ribeiro em São Vicente. Mas o movimento regionalista manteve-se intacto na
diáspora, desenvolvendo actividades sociais e culturais, que foram importantes
para manter a coesão das nossas comunidades.
A abertura política em
Cabo Verde, graças ao combate dos emigrantes, permite, agora, um debate sobre a
Regionalização, esperando-se assim encontrar um novo modelo de gestão da Nação
na sua diversidade, de forma a que receba uma maior contribuição dos emigrantes
em todas as áreas.
A emigração na criação da Nação
A emigração é antes de
mais uma questão local ou regional antes de ser nacional. Desde o século XIX
que os cabo-verdianos vêm criando comunidades no estrangeiro. Os primeiros
emigrantes trabalhavam no mar alto, na pesca da baleia, indo um grande número
desses heróicos marinheiros fixar-se no leste dos Estados Unidos em cidades
crioulas como New Bedford, Providence, Pawtuket. Para ali levaram a sua música
e criaram as suas associações de solidariedade, sem as quais não teria sido
possível organizar essas comunidades. A nossa literatura romanesca é um
verdadeiro testemunho dessa emigração. O nosso “Chiquinho”, romance iniciático
de Baltasar Lopes, é acima de tudo a história de um percurso migratório para os
Estados Unidos de um Sãonicolense, com um projecto de emigrar para conseguir
bens materiais e culturais: trabalhar de noite e estudar de dia, pensando na
sua ilha e à procura de mecanismos para a sua transformação política e
económica após o seu regresso.
Ali nos Estados Unidos,
em contacto com os movimentos cívicos, os Cabo-verdianos repensaram o seu
percurso no espaço colonial português, marcado pela escravatura e a
colonização. Daí se lançaram na invenção da Nação cabo-verdiana, que em várias
etapas foi tomando corpo, a ponto da existência da Nação cabo-verdiana
anteceder a independência do país. A lição dos movimentos de emancipação dos
negros americanos fizeram compreender aos emigrantes cabo-verdianos que somente
com a construção de uma nação independente seria possível ultrapassar-se as
sequelas da escravatura e do colonialismo.
Os emigrantes
cabo-verdianos dos Estados Unidos, ao regressarem à terra, não só trouxeram
dólares mas também valores morais e uma elevada consciência da dignidade e da
justiça. A eles se deve as transformações sociais e culturais em certas ilhas
nos fins do século XIX e princípios do século XX. Foi na América (New Bedford),
no ano de 1900, que o emigrante Eugénio Tavares clamou no seu jornal Alvorada:
« África aos Africanos » ou a « África terá o seu Monroe »,
referindo-se à doutrina Monroe que interditava os ingleses de intervirem no espaço
americano. Os Cabo-verdianos dos Estados Unidos participaram na Primeira Guerra
Mundial num batalhão estrangeiro, mas na Segunda Guerra Mundial combateram num
batalhão cabo-verdiano, provando que a Nação cabo-verdiana já existia, enquanto
que Portugal mantinha a sua neutralidade na luta contra o fascismo. Mas depois
que a “América fechou as portas à nossa expansão”, segundo o poeta Jorge
Barbosa, surgiu a emigração para o Senegal, um país africano amigo, que
fraternamente soube acolher os cabo-verdianos e que se solidarizou com Cabo
Verde nos anos das secas e das fomes, como também no plano político para a sua
independência.
A frentes de luta da emigração pela emancipação da Nação
Mas, sem dúvida, foi a
emigração para a Holanda, a partir dos anos cinquenta, que veio notoriamente a
transformar as ilhas nos planos económico, cultural e político e criar as
condições necessárias para a fundação de um Estado independente. O projecto de
emigração para a Holanda nasceu com a chegada, nos anos cinquenta, de uma
dezena de Cabo-verdianos, todos saídos clandestinamente do Porto Grande de São
Vicente. A fuga através do Porto Grande era a resposta política dos
Cabo-verdianos à partida forçada para as roças de São Tomé e Príncipe e ao
regime colonial impostos pelo governo português. Esse pequeno grupo de
apóstolos da emigração, consciente da situação em que se vivia em Cabo Verde,
fez um apelo aos comerciantes mindelenses, no sentido de enviarem trabalhadores
para os barcos holandeses e de outras nacionalidades que necessitavam de
mão-de-obra. Houve mesmo reuniões de comerciantes e intelectuais, entre os
quais se destacam Mateus Santos (Matigim, pai de Constantino Delgado), Manuel
Matos, Baltazar Lopes e o próprio administrador Luís Rendal, com o fim de se
criar um fundo para o envio de jovens cabo-verdianos para a Holanda. Mesmo
assim não faltaram agiotas a proporem empréstimos com juros a 100%, como ficou
glosado numa coladera de Frank Cavaquinho. Mas também houve gente de bom
coração que emprestou dinheiro sem qualquer juro aos jovens candidatos à
emigração.
O grupo da Holanda criou hotéis para receber os emigrantes (o primeiro foi
o Hotel Delta, de Constantino Delgado), loja para fornecimento de vestuário
para enfrentar o frio e os temporais no mar alto (de Djunga de Biluca) .
Quinzenalmente desembarcavam na estação de comboio de Roterdão centenas de
Cabo-verdianos que eram acolhidos nos hotéis crioulos, iniciados na vida
marítima e depois colocados nos barcos através de amigos e agentes, a quem
tinham de pagar para os embarcar. Os melhores marítimos, técnicos, incluindo
estudantes liceais que fugiam à guerra colonial, chegavam a Roterdão para
mostrarem ao mundo que eram “the best
sailors of de world”, no dizer do poeta Osvaldo Osório.
O apelo do grupo dos
apóstolos da emigração para a Holanda estendeu-se a todos os cantos e rincões
das outras ilhas e também às colónias de emigração, ao tempo, Senegal, Angola,
Brasil, Argentina e mesmo os Estados Unidos. Alguns desses heróis ainda estão
vivos e os que morreram ficaram na memória do povo. Merecem estátuas,
condecorações e que os seus nomes sejam dados a avenidas, porque libertaram o
povo de Cabo Verde das secas e das fomes, do caminho e das roças de São Tomé e
Príncipe e deram um grande contributo para a independência. Cito alguns nomes
de memória: Eduardo de Bia Dideal, Constantino Delgado, Djunga de Biluca,
Manuel Cassidy, Domingos Paps, Arnaldo de Tadô, Sidónio Antunes e outros que
não consegui identificar. Os emigrantes lamentam que pelo 5 de Julho, data da
Independência, se esqueça também de homenagear os emigrantes pelo seu papel
determinante na Independência nacional.
Existe uma tendência em
Cabo Verde em menosprezar-se as competências dos emigrantes. Ora, acontece que
no caso da Holanda, os candidatos eram seleccionados entre os melhores
profissionais e exigia-se-lhes uma certa conduta moral reconhecida na
sociedade. Outras vezes a escolha recaía sobre um elemento mais bem formado da
família, visto a missão ser de grande importância económica, como também a de
defender o bom nome de Cabo Verde. Foi graças a essa atitude selectiva e também
ao apoio de administradores, como Luis Rendall e Adalberto Oliveira
« Minito », que os emigrantes cabo-verdianos da Holanda realizaram o
sonho de transformar Cabo Verde.
O sacrifício foi
enorme e ainda a Nação Cabo-verdiana não teve consciência disso: houve
emigrantes para a Holanda que trabalharam cinco anos nos barcos, sem tomarem um
dia de férias, para poderem financiar a vinda dos seus irmãos e outros
familiares. Os exemplos são muitos : conheci uma família de oito irmãos
que se associaram para enviarem o irmão mais velho para a Holanda e, em três
anos, todos os irmãos tinham emigrado para esse país com as respectivas
famílias. Em todas as famílias, quando o pai ou o filho mais velho emigrasse
para a Holanda a situação social mudava radicalmente e os irmãos podiam assim
prosseguir os estudos liceais e mesmo universitários.
A passagem por um país
como a Holanda, onde as estruturas sociais exigem uma certa moralidade, serviu
de modelo a muitos patrícios que se deram ao exercício de recompor as suas
famílias pelo casamento, educar devidamente os seus filhos, dignificando-se por
uma nova postura de estar e viver na sociedade. O casamento, que era próprio de
famílias pertencentes à pequena burguesia, democratizou-se e a maioria dos
emigrantes de regresso ao país casavam-se, diminuindo assim o número de filhos
ilegítimos, fenómeno corrente na sociedade cabo-verdiana. Mas os casamentos que
até então era um acto religoso feito na Igreja católica, quase imposto pelo
regime colonial, passaram a ser, na sua a maioria, feitos no Registo
Civil. Este facto explica-se pela
influência dos emigrantes vindos de países protestantes e também do
racionalismo cristão crescente no seio das comunidades emigradas, importado da
ilha de S. Vicente ou directamente do Brasil, ou ainda por uma manifesta
atitude de repúdio contra a Igreja católica pelo seu apoio ao regime colonial
que conduzia uma guerra em três frentes na África e que impunha uma severa
censura às manifestações culturais e políticas cabo-verdianas.
Deve-se no entanto aqui
deixar bem explícito que, após a independência, graças ao aparecimento de um
novo clero cabo-verdiano, a Igreja católica fez a sua própria evolução política
e deu um grande contributo para a abertura política. O seu jornal Terra Nova,
dirigido pelo frei António Fidalgo Barros, foi o verdadeiro porta-voz da
oposição e da defesa dos direitos dos emigrantes.
Até 1968, a presença de Cabo-verdianos em Portugal limitava-se a altos
funcionários públicos, estudantes universitários e desportistas. Foi somente
com a diminuição da mão-de-obra na construção civil e nas minas, na sequência
da guerra colonial e da emigração portuguesa para França e Alemanha, que
Portugal se tornou numa terra de emigração para os cabo-verdianos de todas as
classes. Sem qualquer preparação e formação, eram recrutados no interior das
ilhas com falsas promessas de salários, em condições similares à da emigração
para São Tomé e Príncipe. As condições de trabalho eram horríveis, os
alojamentos eram insalubres e frios, quando não eram obrigados a viverem em
barracas e em zonas degradadas. Actualmente no Bairro de Santa Filomena na
Amadora são frequentemente expulsos das suas residências, sem que o
Governo de Cabo Verde reaja. Isto faz-nos lembrar da situação dos portugueses
nos bidonvilles da região parisiense
nos anos sessenta do século passado, onde várias formas de resistência e de
solidariedade foram criadas para vencerem as condições de vida e de trabalho
(Alfredo Margarido – Éloge des
bidonvilles).
Mas o mais triste na
história da emigração cabo-verdiana em Portugal é que este país foi o único, na
história da descolonização, a retirar a nacionalidade portuguesa aos
originários das suas colónias, a menos que provassem ter origem portuguesa
“continental” ou uma residência de cinco anos em Portugal. O próprio Salazar
nunca faria isso, pois teria na memória o facto de ter enviado para as prisões
de Caxias e do Tarrafal centenas e centenas de africanos, por terem
reivindicado a sua nacionalidade africana. O acordo da independência, entre
Cabo Verde e Portugal, à imagem do que aconteceu com os outros países
colonizadores europeus, previa que os cidadãos das colónias, que reunissem os
requisitos para conservarem a nacionalidade portuguesa, teriam um período de
dois anos para escolherem a nacionalidade da sua preferência. Ora, aconteceu
que, quinze dias após a independência, a comunidade cabo-verdiana foi informada
pelo Consulado de Portugal em Paris e Versalhes de que teriam recebido um
telegrama do Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal a bloquear a
concessão de passaportes aos naturais de Cabo Verde. O silêncio do governo de
Cabo Verde demonstrou que havia um conluio entre os dois governos para estrangular
a emigração cabo-verdiana que contestava a unidade Guiné-Cabo Verde através das
suas associações. Mesmo aos funcionários oriundos das “províncias do ultramar”
não eram renovados os documentos de identidade, se não pudessem provar a origem
portuguesa ou a presença de cinco anos em Portugal. Essa decisão do governo
português teve repercussões graves em toda a emigração cabo-verdiana na Europa.
Na Holanda, foi o caso da Neddloyd que licenciou centenas e centenas de
Cabo-verdianos por se lhes ter retirado a nacionalidade portuguesa. Muitos
deles foram morrer de frio e sede na Rua de São Bento em Lisboa com a revolta
contra Portugal estrangulada no peito. Que foi feito do dinheiro pago para a
concessão dos passaportes portugueses e das taxas militares obrigatórias para
os Cabo-verdianos? Em França, tivemos que esperar até 1981, com a vitória de
François Miterrand, para que os emigrantes cabo-verdianos, apoiados pela
Associação Solidariedade Cabo-verdiana, fossem legalizados. Queria aqui mesmo
testemunhar a minha admiração e respeito pela Senhora De Saint Michel,
assistente social, que lutou encarecidamente para legalizar os Cabo-verdianos
em França.
Não podemos também aqui
ignorar a trágica emigração para São Tomé, iniciada desde 1861 e retomada em
1902 e anos seguintes e que foi denunciada por Eugénio Tavares e Sena Barcelos.
Essa forçada emigração foi retomada nos fins dos anos 40 e mais uma vez
denunciada por Baltasar Lopes, Jorge Barbosa, Luis Romano, Amílcar Cabral,
Ovídio Martins Gabriel Mariano, Onésimo Silveira, entre outros, a cujas vozes
se juntaram em particular as dos nossos trovadores Jorge Monteiro (Jotamont),
Lela de Maninha, Abílio Duarte, Manuel de Novas. Um grande número desses irmãos
ainda hoje ali continua, quando no “contrato” havia uma cláusula que estipulava
o regresso após três anos de sacrifícios. Esses irmãos foram abandonados nas
roças de São Tomé e nem Cabo Verde e nem Portugal assumiram o seu regresso. O
governo de Cabo Verde poderia ter pedido a intervenção das Nações Unidas para o
regresso desses Cabo-verdianos, tanto mais que o líder nacionalista Amílcar
Cabral denunciara em seu tempo essa deportação para as roças de São Tomé junto
das Nações Unidas. Aliás o PAIGC/CV anda a trair os seus próprios estatutos
datados de 1960 que previam no seu artigo 3° : o regresso imediato dos
Cabo-verdianos das roças de São Tomé e Príncipe.
Porém, a culpa por
estes factos não pode ser simplesmente atribuída ao governo de Cabo Verde. Como
compreender o actual silêncio dos intelectuais que nos anos cinquenta
denunciavam corajosamente a emigração forçada para São Tomé e Príncipe? E os
municípios que se interessam pelas comunidades nos países ricos, porque não se
interessam também pela situação dos emigrantes dos países pobres como os da
África, em particular de São Tomé e Príncipe? Ou será que somente se ocupam dos
emigrantes com capacidade de investimento? Haverá uma união sagrada entre os
partidos, os municípios e os intelectuais para silenciar o drama dos
Cabo-verdianos nas roças de São Tomé e Príncipe que são enganados nos períodos
eleitorais? A Associação dos Municípios nunca organizou um simpósio ou um
debate sobre a emigração. Os presidentes dos municípios gostam de geminações
para poderem viajar gratuitamente e ser hospedados em hotéis de luxo, mas
esquecem-se de que os embaixadores dos municípios nas terras de emigração são
os emigrantes.
Cabo Verde é hoje um
país moderno, reinventado por uma larga participação da sua emigração,
incluindo antigos deportados de S. Tomé e Príncipe que graças à solidariedade
dos amigos e irmãos conseguiram chegar à Holanda. Em todos os cantos das ilhas
os emigrantes plantaram casas, árvores, escolas, financiaram a formação de
quadros, investiram em vários sectores económicos e, com a experiência e o
saber adquiridos, trouxeram valores que enriqueceram a caboverdianidade.
Emigração e luta de libertação nacional
Desde o ano de 1962
Amilcar Cabral aproximou-se da emigração na Holanda, como já fizera em Dakar,
no Senegal. Segundo Djunga de Biluca, o professor António Saint Aubyn (Totô) e
o Dr. Jorge Humberto, (Nhunha), na época jogador de futebol no Inter de Milão,
foram os primeiros militantes da independência de Cabo Verde a deslocarem-se em
nome do PAIGC para conscientizar os emigrantes a favor da luta pela independência.
Mas foi em França, em 1964 (no próximo ano festeja-se os 50 anos da partida do
grupo de Mozelle) que o PAIGC recrutou os primeiros combatentes para os maquis
da Guiné Bissau.
No chão da Holanda
nascia, em 1966, o conjunto A Voz de Cabo Verde, expressão máxima da cultura
musical da nossa emigração, graças a um grupo de artistas que tão bem
souberam levar o nome de Cabo Verde além fronteiras. Foram eles: Bana, com a
sua cálida e maviosa voz, Luis Morais, genial clarinetista, Morgadinho, grande compositor
de mornas mas também o melhor trompetista cabo-verdiano, e, ainda, Toi de
Bibia, Jean da Lomba, Frank Cavaquinho e Chico Serra. Outros músicos seguiram
as pisadas da Voz de Cabo Verde, como Humbertona, Valdemar Lopes da Silva,
Baltasar Barros “Nhô Baltas” e tantos outros artistas que passaram por Roterdão
e que fizeram da música um engajamento político. Destacam-se, na promoção do
grupo, o editor Djunga de Biluca, proprietário da editora Morabeza, Constantino
Delgado, o financiador do grupo e ainda Djosa de Bernarda, que apoiou o grupo
durante a estada na Holanda, bem como Zó Barbosa, na altura Presidente do
Círculo dos Estudantes da Universidade de Lovaina, na Bélgica, que acolheu o
grupo durante o período em que esteve à espera do visto para voltar a entrar na
Holanda. Graças aos seus emigrantes, em especial os músicos, Cabo Verde é
mundialmente conhecido e tem recebido ajudas internacionais dos países onde
labutam os Cabo-verdianos. O sucesso musical de Cesária Évora deve-se também ao
sacrifício dos emigrantes, cuja solidariedade foi determinante no lançamento da
carreira internacional da nossa Diva de Pés Descalços.
Emigração e associativismo
Outro contributo da
emigração para a dignificação da nação e para a causa independentista veio do
movimento associativo que nasceu em 1968 na Holanda com o objectivo de defender
os interesses da comunidade emigrante, numa ruptura total com o sistema
colonial. Este modelo associativo iria estender-se a todas as comunidades
caboverdianas na Europa. O seu jornal “Nôs Vida” foi o porta-voz das
revindicações dos emigrantes, merecendo ser reeditado num volume. Contou com a
colaboração de escritores cabo-verdianos em França, Brasil, Estados Unidos e de
muitos anónimos. Foi também um jornal ao serviço da luta pela independência de
Cabo Verde. Perante isto, não se pode falar de emigração simplesmente em termos
económicos. E o erro de se insistir numa simples leitura económica da emigração
impede tanto aos nossos historiadores como aos nossos políticos de situarem a nossa
emigração no seu contexto político. Dizia Alfredo Margarido que a emigração é
antes de tudo uma questão política, pois são os erros políticos que determinam
as crises e forçam os homens a emigrarem.
O movimento
associativo, que conheceu dias de glória antes e depois da Independência,
desapareceu da cena da emigração devido à sua marginalização pelo Estado
cabo-verdiano. Restam aquelas associações que estão coladas aos partidos
políticos e que vivem das subvenções do Estado de Cabo Verde. O governo e os
municípios precisam de repensar na criação de um movimento associativo que, por
um lado, vise a defesa dos emigrantes e, por outro, esteja directamente
comprometido com o investimento em Cabo Verde. E para isso devem ser formados
dirigentes para essas associações, como acontece nos antigos países de leste e
na África mediterrânica. Aliás Portugal, segundo o Luso Jornal de França, está
a organizar nos seus consulados formações para dirigentes associativos.
A emigração no contexto da
regionalização
Cabo Verde não foi para
a independência com riquezas materiais, mas encontrou um país reconstruído
pelos emigrantes que também tinham participado na formação de quadros e na
evolução social e cultural da sociedade. A sua única riqueza, dizia o
Presidente Aristides Pereira, era o homem cabo-verdiano com a sua coragem,
inteligência e tenacidade. Mas o emigrante poderia ter feito mais se os
governos sucessivos tivessem tido em conta as suas aspirações e a
realidade dos países onde vivem. A Regionalização será pois uma grande
oportunidade de se repensar Cabo Verde sem excluir os emigrantes e uma uma
ocasião de pensarmos numa verdadeita política de emigração, porque ao contrário
do turista, a falsa galinha de ouro de Cabo Verde que nada deixa no país, o
emigrante partilha tudo o que leva, para além do seu habitual investimento. Em
termos económicos não é fácil avaliar-se a contribuição do emigrante: o
dinheiro vai com ele no seu bolso, as encomendas são enviadas de barco, os
bilhetes de avião que paga são dos mais caros do mundo, é explorado nas
Alfândegas, coisas que nunca poderão ser contabilizadas. Recentemente, o
economista cabo-verdiano João Estevão declarou que as transferências dos
emigrantes teriam diminuído de 10%. Conheço bem a crise económica que se vive
na Europa e especialmente em Portugal. Mas há outras causas: nunca houve uma
verdadeira política de emigração para rentabilizar as economias dos emigrantes.
A criação de um Ministério das Comunidades, um exagero, não resolve o problema.
O que exigimos há mais de trinta anos é a criação do Conselho das Comunidades,
autónomo, eleito pelos emigrantes e onde estes poderão ter voz e palavra nas
escolhas das políticas de emigração. Já está provado que os dois deputados da
emigração, sem ideias próprias, nunca tiveram palavra na Assembleia Nacional.
Sabe-se por outro lado que os emigrantes que tinham investido em Cabo Verde
estão a vender os seus bens, preferindo regressar, devido à falta de segurança,
roubos dos seus bens, problemas de saúde, etc.
Uma outra revindicação
dos emigrantes é a criação de um Banco de Emigrantes em Cabo Verde com
tentáculos nos consulados e embaixadas, com a participação dos emigrantes a 70%
e do Estado cabo-verdiano a 30%, para efeito de fiscalização. O Mali, a
Mauritânia e Marrocos instalaram bancos em consulados e embaixadas, funcionando
aos sábados e domingos, o que muitas vezes tem salvo esses países da crise
económica. Este banco teria em conta a política monetária dos países de origem
dos capitais e, a exemplo da Argélia, daria vantagens aos Cabo-verdianos
emigrados nesses países. A verdade é que os países de emigração têm também
políticas para captar as economias dos emigrantes, a começar por créditos para
compra de casa, mobiliário, taxas de juros favoráveis, etc., para que as economias
dos emigrantes não saiam do respectivo país. E este banco de emigrantes, dando
verdadeiras vantagens aos emigrantes, traria uma maior capacidade de
intervenção destes na vida económica de Cabo Verde.
Com mais de sessenta
anos de emigração para a Holanda com uma história económica, social e cultural
importante, não é admissível o facto de não haver um Centro Cultural Holandês
em Cabo Verde e em especial em São Vicente, onde nasceu a emigração para a
Holanda. As relações entre Cabo Verde e a Holanda nunca se limitaram
simplesmente a relações comestíveis. Precisamos de um Centro Cultural Holandês
à imagem dos centros culturais português e francês, onde o povo cabo-verdiano
possa conhecer os valores económicos, culturais e sociais desse país.
Ao nível do ensino
liceal e técnico, porque é que as línguas dos países de emigração, como o holandês
e o italiano, não podem ser ensinadas como disciplinas de opção, o que
facilitaria não só o intercâmbio cultural como também o conhecimento e a
história dos países de emigração? Em verdade, o ensino das línguas em Cabo
Verde não acompanha a política de emigração e nem está contemplado no projecto
de globalização em que Cabo Verde
pretende inserir-se.
Nunca é demais insistir na necessidade de se realçar o papel dos emigrantes
na história económica, política e cultural de Cabo Verde. Os manuais escolares
dos alunos do ensino primário e secundário abordam muito superficialmente as
causas da emigração e suas consequências na vida económica, social e cultural
do país. Nas universidades, faltam verdadeiros especialistas da emigração para
dirigirem seminários e mestrados. Que sabe o jovem estudante liceal ou o jovem
universitário cabo-verdiano da formação dessas comunidades e da sua
contribuição na história de Cabo Verde há mais de dois séculos? Deveríamos
criar um arquivo da emigração e pô-lo à disposição dos alunos e pesquisadores.
Por isso a história da emigração está por ser escrita e recomenda-se ao
Ministério da Educação a criação de uma equipa pluridisciplinar de estudiosos
compreendendo no seu seio emigrantes, os verdadeiros actores desta saga
histórica, para que possam reescrever a parte que lhes cabe da História de Cabo
Verde. Em tempos, até se entregou à antiga potência colonial a responsabilidade
de escrever a nossa História. Isto
faz-me lembrar de uma frase de Aimé Césaire citada no seu Discours sur le Colonialisme: « tant que les lions n’auront
pas leurs propres historiens, les histoires de chasse ne pourront que chanter
les gloires du chasseur ». A própria universidade deve ser
repensada de forma a responder aos sonhos e objectivos para o desenvolvimento
de Cabo Verde. Temos muitas universidades, o que não quer dizer que produzamos
um ensino de qualidade. O diploma é como uma carta de transporte, mas nunca
provou saber e qualidade. Pode-se ser diplomado mas é na prática quotidiana que
se confirma o saber.
As nossas universidades deverão contribuir para o melhor conhecimento da
emigração, como disciplina pluridisciplinar, recrutando quadros da diáspora,
incentivando o intercâmbio universitário, afim de despertar o interesse de
todos os Cabo-verdianos para este percurso histórico que foi fundamental para o
nascimento de Cabo Verde como Nação livre e independente.
Hoje os problemas dos
emigrantes e de Cabo Verde são outros, pois não se trata da luta contra as
secas e as fomes ou da luta anti-colonial. Perante os desafíos actuais, os
candidatos à emigração devem ser previamente preparados. O mesmo se deve exigir
dos quadros das embaixadas e consulados que devem ser recrutados não por
simpatia ou filiação partidária e conhecer as realidades da nossa diáspora e do
país em que vivem. Num país como a França há necessidade de cônsules honorários
nas localidades onde vivem os nossos emigrantes, dada as distâncias entre Paris
e os locais de residência, e que poderiam apoiar os movimentos associativos.
Em países
regionalizados é a Região que se ocupa da emigração, empurrando os municípios a
assumirem também a sua responsabilidade na matéria. Os emigrantes votam em
todas as eleições, são informados dos projectos dos municípios e muitas vezes
são os próprios municípios que organizam voos charters para que nenhum filho da
região passe as férias noutra localidade. No Sul da Itália, durante o período
de Julho, Agosto e Setembro, o município, as empresas, os bancos, as igrejas, o
teatro, os cinemas, os jornais põem-se ao serviço dos emigrantes. São estes
organismos que procuram os emigrantes para lhes apresentarem os seus projectos.
Os funcionários não entram de férias durante esses três meses e a maioria dos
organismos, como os municípios, os bancos, as empresas e mesmo as igrejas
funcionam 24/24 horas. Em três meses o comércio, os bancos e as empresas ganham
o suficiente para repousarem durante os outros nove meses do ano. Se os nossos
municípios tivessem uma política de emigração idêntica a esta, encontrariam na
diáspora militantes dispostos a participarem em geminações dos municípios, na
organização de intercâmbios desportivos e culturais entre crianças, jovens e
adultos do país e da diáspora, no apoio ao turismo e no investimento internacional.
A reintegração do emigrante no seu solo prepara-se principalmente ao nível das
crianças e jovens através de viagens de estudo e participação em encontros
culturais e desportivos da juventude. O papel dos municípios ou da região será
fundamental nesta tarefa de reintegração da juventude emigrante.
A terceira idade pode
também constituir uma riqueza, na medida em que os emigrantes reformados,
regressando ao país, podem dar o seu contributo, para além do económico, nas
áreas do ensino, formação profissional, entre outras. Cabo Verde deveria
negociar com os países de emigração uma política de retorno dos reformados que
lhes garanta uma cobertura médica que lhes permita regressar definitivamente ou
ter estadas mais prolongadas no país. Actualmente, os reformados da Itália
esperam que os dois governos assinem um acordo nesse sentido.
Deve-se transferir
certas responsabilidades económicas e políticas para a Região, inclusive a da
emigração com direitos e deveres. O centralismo económico à volta de Cabo Verde
Investimento e da Bolsa de Valores, concentrados numa única ilha para onde se
devem deslocar todos os que desejam investir em Cabo Verde, prejudica o
desenvolvimento das outras ilhas. Em cada ilha ou grupo de ilhas, conforme o
modelo a adoptar, a Região deve assumir a responsabilidade da sua economia, com
autonomia, pondo termo ao centralismo do Estado. Num país de grande desemprego,
a Bolsa de Valores somente serve para o incrementar, pois aqueles que desejam
investir nas empresas para darem trabalho são atraídos pelos lucros imediatos
da Bolsa. E o resultado está à vista: apenas contribuiu para engordar uma
classe social com salários elevados. Num outro país a oposição teria analizado
esta questão e denunciado os responsáveis. Mas o pior são as exigências dos
bancos e outros organismos em relação aos emigrantes, que muitas vezes os
humilham, interrogando-os de uma maneira policial sobre a origem dos meios
económicos, conquistados com suor e sangue na emigração, o que não acontece com
os investidores estrangeiros, mais precisamente espanhóis, italianos e
irlandeses.
O governo, através do
Ministério da Cultura, deve criar um projecto cultural para a emigração, favorecendo
o intercambio entre a diáspora e a Terra Mãe, dando uma nova dinâmica cultural
aos consulados e embaixadas. Os congressos do movimento associativo, incluindo
o Congresso dos Quadros, devem ser encontros de diálogos entre a diáspora e o
país real e não exclusivos aos emigrantes e as respectivas conclusões devem ser
aplicadas pelo governo.
Os emigrantes esperam
fazer parte do debate sobre a Regionalização, seja através dos seus quadros ou
através das suas associações. Quanto aos custos que a Regionalização poderia
trazer ao erário público, sugerimos o seguinte: a diminuição do número de
deputados e a redução de municípios, que os partidos inventam nos períodos
eleitorais. Além disso em vez de várias eleições poder-se-ia, como no Brasil ou
Estados Unidos, fazer uma única eleição para a Presidência da República, a
Assembleia Nacional, os Municípios e Regiões.
Caboverdianamente,
Luiz Silva
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