2ª
Parte − A situação do Centralismo em
Cabo Verde e as reformas necessárias: a sociedade civil, os partidos e o poder.
P −
Muitos defendem que o centralismo político-administrativo era um mal
necessário, no arranque da independência. Está de acordo?
R −
A pergunta que se coloca, antes de mais, é porque é que o então partido no
poder, o PAIGC, não equacionou a instalação da Presidência da República no belo
palácio cor-de-rosa do Mindelo e/ou a colocação de alguns ministérios e
secretarias de estado na ilha, para manter um mínimo de equilíbrio territorial
(entre os dois grupos do arquipélago) no que concerne à distribuição dos órgãos
de soberania. Tal medida teria proporcionado outro dinamismo ao conjunto
nacional, mercê da articulação funcional e da concorrência salutar entre dois
pólos históricos irradiadores de desenvolvimento regional e nacional. Repare-se
que isso teria, antes de mais, gerado efeitos psicológicos favoráveis à boa
harmonia nacional, na medida em que desarmaria qualquer pretexto para queixas reivindicativas
de um tratamento mais igualitário. Além disso, e não menos importante, teria
assegurado condições concretas para a fixação das populações de uma forma mais
equilibrada, evitando a crescente assimetria demográfica que com o tempo se foi
acentuando. Isto porque o investimento interno e externo passaria a não ter a
Praia como destinatário exclusivo, e desta maneira outras portas seriam abertas
para a demanda do emprego. Mas atenção que estamos a falar de uma medida de
desconcentração de órgãos de soberania e não de regionalização. Mas ela teria
sido a antecâmara de uma posterior regionalização, que se faria com um mínimo
de rupturas e constrangimentos.
Será então caso para perguntar se haverá
hoje num Cabo Verde democrático algum impedimento formal para que o Presidente
da República resida em permanência no Mindelo ou para que alguns ministérios e
secretarias de estado tenham nele a sua sede. As práticas centralistas
associadas a conceitos leninistas do poder terão impedido a tomada de decisões
óbvias e tempestivas olhando também para S. Vicente? Por que não se seguiu o
exemplo dos Açores, onde os órgãos do poder soberano regional foram
distribuídos pelas três mais importantes ilhas? Ou das Canárias, onde o mesmo
poder regional se distribui no essencial pelas duas mais importantes ilhas?
A história desta ilha e a de Cabo Verde
seriam bem diferentes se uma parte da máquina do Estado estivesse
institucionalmente dispersa, ou, se quiser, desconcentrada. No meu entender, se
não revertermos a marcha do centralismo em Cabo Verde, o país irá
desertificar-se humanamente e culturalmente, no sentido em que se transformará
num país unipolar, com um centro aspirador, aglutinador e sorvedor de tudo, e
uma periferia amorfa. Se nada se fizer, estaremos a falar de outro Cabo Verde,
não o caracterizado pela na sua diversidade humana e paisagística, decorrente
da sua natureza arquipelágica. As assimetrias de que sofre Cabo Verde podem
ainda hoje ser corrigidas com políticas acertadas de regionalização e de descentralização.
É por isso que nos organizamos em movimento.
P − Em
concreto, que vícios ou inconvenientes mais importantes aponta ao actual Estado
centralizado?
R − São vários os
exemplos do centralismo gritante em Cabo Verde, de que os cidadãos se reclamam
com justa razão. Aponto-lhe apenas as seguintes situações elucidativas:
− Qualquer
decisão, grande ou pequena, só pode ser tomada na Praia, face à ausência de
qualquer delegação de poderes. Se virmos que a obtenção de um simples bilhete
de identidade não se dispensa do escopo da capital, calcule-se então o que não
será com actos mais importantes da administração pública;
- Os
principais órgãos informativos, nomeadamente a rádio e a televisão estão excessivamente
centralizados e estatizados, dando cobertura exclusiva à capital e a Santiago;
− Com efeito, toda a máquina do Estado está
concentrada na Praia, de modo que qualquer assunto oficial ou do interesse
directo dos funcionários públicos depende exclusivamente da capital;
−
Com esta inércia, os serviços e empresas tendem a ser transferidos para a
Praia, inclusivamente os que eram tradicionalmente associados ao Porto Grande do
Mindelo e ao Aeroporto do Sal;
- E a consequência é o emprego escassear na
periferia e obrigar a mão-de-obra qualificada, em geral, e os jovens
licenciados, em particular, a procurá-lo na Praia, onde tudo se concentra,
dinheiro, influências e oportunidades, provocando uma hemorragia demográfica e
fuga de recursos humanos e cérebros das ilhas para a
capital.
− De resto, é preciso estar-se na Praia para
se ter boas conexões ou beneficiar das benesses do poder. Dito isto, veja-se o
quão é esta situação desencorajante para quem não vive na capital e quer ver os
seus negócios ou problemas particulares resolvidos em tempo devido e no estrito
respeito pelas regras. Seria exaustivo mencionar a lista de reclamações do
cidadão que, no seu dia-a-dia, se vê claramente prejudicado em relação a quem é
residente na Praia.
Acresce a isto tudo um conjunto de sinais
nítidos de reforço da tendência centralista, como: o lançamento da cidade
administrativa, o paraíso dos burocratas, que vai custar, segundo fontes
noticiosas, a bagatela de várias centenas de milhões de euros; a candidatura da
Praia a um estatuto especial; a proposta para que os deputados residam na
Praia.
Há quem veja nisto tudo, e denuncie, uma
estratégia organizada, uma marcha para a constituição da chamada “República de
Santiago”. Caberá aos poderes (incluindo partidos e elites do poder) desmentir
estas acusações. Este é o panorama actual do país, a que contrapomos a
inscrição da agenda da regionalização, como um desafio e uma oportunidade para
Cabo Verde. A resposta sincera às propostas de regionalização e de
descentralização será a prova de verdade que se impõe, um autêntico teste às
vontades. Pretendemos que a regionalização seja acompanhada por um conjunto de
reformas do Estado, que se traduzirão essencialmente na descentralização do
poder e na desburocratização da máquina estatal, e, como consequência, no
reforço da democracia e da co-participação dos cidadãos em tudo o que se
relacione com a vida pública.
P − Estará o povo cabo-verdiano preparado para
o desafio da regionalização e das reformas do Estado? Entenderá o alcance
destas reformas?
R − Sim,
com certeza. Efectivamente, a regionalização é uma matéria dotada de certa
complexidade, pois tem a ver com uma nova forma de organizar o poder e o
Estado, revestindo aspectos técnicos cuja compreensão pode ultrapassar as
pessoas mais informadas, quanto mais o povo anónimo. Não é algo que possa ser
tema de digladiação em disputas partidárias ou puramente ideológicas do género
a que estamos habituados em Cabo Verde. A regionalização exige uma análise
muito delicada da situação sociopolítica cabo-verdiana, do seu passado,
presente e futuro, ou seja, requer uma visão mais alargada e de longo prazo, do
género de semear para colher mais tarde. Para as pessoas que estão mais
preocupadas com os problemas básicos do seu dia-a-dia, mais viradas para o
imediato, a regionalização pode não dizer nada, à primeira vista. Mas se lhes
forem explicados os seus benefícios directos, aí sim, vão entender e aderir.
Por isso, nesta fase, todo o trabalho dos activistas consiste, primeiro que
tudo, em apontar os malefícios da centralização na vida das populações e em
enfatizar as vantagens da descentralização e da regionalização, designadamente:
como seria melhor a vida do cabo-verdiano se o país fosse descentralizado,
quais os benefícios para as populações de um poder local verdadeiro e forte.
Pois, a regionalização não é um devaneio de mindelenses lunáticos, mas uma
necessidade imperiosa e uma conquista para todos os cabo-verdianos. Todavia,
penso que os mindelenses, devido a uma contingência do destino, pela sua
vivência mais urbana, pela sua maior abertura ao mundo, pelas suas tradições de
luta, de sindicalismo, está muito apto a perceber esta mensagem, e acreditamos
que esta ilha será o palco da batalha da regionalização, como o foi outrora em
momentos decisivos da nossa História contemporânea. Por isso, estamos a
concentrar ali o foco da discussão, mas isso não invalida que amanhã apareçam
um ou vários movimentos cívicos congéneres na Praia, como reacção e como
catalisadores locais do debate que propomos ao país. O problema é que ainda não
apareceram e esperamos que isso ocorra. Para
além disso, associamos a este processo a consecução de objectivos cívicos de
cidadania e de democratização de Cabo Verde, país jovem mas infelizmente já
anquilosado politicamente. Apostamos em que a regionalização seja a 3ª vaga
democrática que irá varrer o país, que transformará a actual democracia formal
numa democracia local mais real e mais próxima dos cidadãos. Só a
regionalização materializará a concretização dos princípios de autonomia, subsidiariedade
e proporcionalidade, que enformam o espelho mais cristalino dos valores
democráticos. Aliás, queremos ser membros de parte inteira no clube dos países
democráticos, o que implica partilhar os valores e as práticas da dianteira
civilizacional, como: o aprofundamento constante da democracia, a
descentralização e a regionalização, entre outras conquistas.
P − E quanto à sinceridade e verdadeira convicção
do JMN e do PAICV, assim como do Carlos Veiga e do MPD, e mesmo de alguma elite
residente na Praia, relativamente a este processo, tendo em conta algumas
contradições já vindas a lume? É que o JMN já tinha manifestado a ideia de um
debate e mesmo a abertura de um livro branco, o que por enquanto não passou de
mera intenção. Portanto, em que fase de ponderação acha que estarão o governo e
os partidos quanto a este processo?
R − Até prova em contrário, acreditamos nas
promessas de JMN de abertura de um debate e da abertura de um livro branco. Só
que já la vão 6 meses, por enquanto “nem
fum nem mandod”. Há um espaço aberto de diálogo e a oportunidade única para
um debate profundo sobre Cabo Verde, as reformas a implementar no Estado e no
país. Todavia, parece que há neste momento uma atitude táctica, de avaliação e
de posicionamento no terreno. Poderão estar os partidos a observarem-se uns aos
outros, para ver quem dá o primeiro tiro, ou então estarão a municiar o seu
arsenal, de ideias, claro. Ouvi falar de declarações e posições de Carlos Veiga
favoráveis aos nossos propósitos e tudo indica que ele é pró-regionalização. No
entanto, compete ao governo, ao partido que o suporta, assim como à oposição,
responder aos desafios que os movimentos da sociedade civil estão a lançar.
Estamos a aguardar serenamente a resposta do governo e dos partidos. Que saiam
das suas trincheiras. Todas as cartas estão na mesa.
P − O PAICV propõe uma Regionalização
Administrativa e o MPD propõe uma Ilha Região sem especificar a sua natureza
concreta. Como interpreta isto?
R − Todos
os defensores da regionalização têm convidado o governo a não enveredar pela
via da regionalização administrativa. Se tal for o caso, o que estão a propor é
algo minimalista que manterá o centralismo intacto, quando o centralismo é a
raiz do mal e a causa da nossa luta. A ideia de governadores nomeados não
funciona, visto ser uma solução ultrapassada, do passado, uma experiência já
testada em Cabo Verde e que não resultou, precisamente porque não passava de um
simulacro de reforma. Se querem manter um diálogo aberto, não se pode usar
expedientes, truques, ou estratagemas para distrair ou constituir manobra de
diversão em relação a um tema que é sério. Por outro lado, a proposta do MPD
sobre a lha Região é coerente com o que tem anunciado, mas nunca explicitaram o
conteúdo do que pensam sobre a regionalização. Os barões deste partido poderão
querer também uma regionalização minimalista? De resto, há uma grande
dificuldade em Cabo Verde de as pessoas e os partidos definirem ou clarificarem
o seu pensamento em muitas matérias atinentes ao futuro do país. Mas aqui o que
está em causa é um princípio fundamental, a reforma do Estado e não expedientes
administrativos dilatórios. Portanto, a ideia da regionalização Administrativa
será combatida. Nada de delegados do governo, autênticos paus mandados. A
regionalização terá de corresponder à criação de mais um nível de democracia
local, pelo que terão de existir órgãos regionais
democraticamente eleitos (deputados regionais e Presidente) pelas populações.
P − Quais
são os principais objectivos, metas, timings, calendários do movimento?
R − Numa
primeira fase, contamos com o aprofundamento da mobilização cívica em torno da
regionalização, a ocorrer não só em S. Vicente como em todo o país e na
Diáspora. Todavia, esperamos que o governo, os partidos e a sociedade civil
representada por nós e vários outros parceiros, iniciem um diálogo e um debate
profundo já no primeiro trimestre de 2013 sobre o tema “Regionalização de Cabo
Verde, a Reforma do Estado”. Deverá haver, ao longo de 2013, várias reuniões
formais e informais tanto a nível dos movimentos de cidadania como com o
governo e os partidos. Acertar as metodologias de trabalho e os grupos de
reflexão e de trabalho. Esperamos fixar a meta de 2013 para concluir a
discussão sobre a Reforma, já incluindo o modelo de regionalização e seu
calendário de implementação, assim como o conjunto de reformas de que o país
precisa. Em paralelo, deve-se proceder à desconcentração da máquina do Estado e
sua a realocação em S. Vicente e noutras partes do
arquipélago. Por exemplo, porque não ter ministérios localizados em S. Vicente
ou porque não instalar a Presidência da República em S. Vicente?
P − Haverá
necessidade de uma reforma constitucional?
R − Sim,
acredito. Este assunto já é em si bastante técnico, mas tem uma forte
componente política. Deixaremos os aspectos mais técnicos para uma discussão
aprofundada por especialistas, que, eles sim, é que deverão apresentar aos
políticos e aos representantes da sociedade civil as soluções baseadas em
estudos aturados e necessariamente com envolvência multidisciplinar. As equipas
de trabalho têm de incluir, por exemplo, juristas, constitucionalistas,
geógrafos, economistas, etc. Neste momento, estamos a tratar da política da
regionalização, que é uma questão política prioritária. Mas como deixou bem
claro o Presidente da UCID, Lídio Silva, na mesa redonda recém-realizada em S.
Vicente, a regionalização vai necessariamente requerer uma alteração da
Constituição, pelo que temos que ter um olho na política e outro nas questões
técnico-jurídicas. De qualquer maneira, o peso de cada uma das ilhas vai ter de
ser discutido, pois reduzir a democracia a uma aritmética dos votos é reduzir
Cabo Verde, que é uma realidade arquipelágica, e como tal diversa e rica em
sensibilidades, a uma expressão demasiado simplificada e pouco congruente com
as suas potencialidades humanas. A igualdade de direitos de oportunidade de
acesso tem de ser garantida a todos de acordo com a capacidade e inteligência
de cada um e não em função da ilha de origem, filiação partidária ou outros
factores diferenciadores. Daí que seja bem-vinda a ideia que atribuem a Onésimo
Silveira na criação de um Senado ou órgão similar, onde o peso de cada ilha
estaria proporcionalmente representado, algo um pouco inspirado no modelo
federal americano, de modo a promover um reequilíbrio democrático em Cabo
Verde, um 2º nível de democracia. Hoje em dia, o facto de o princípio da
igualdade estar inscrito nas leis democráticas não implica, por si só, o seu
respeito integral, como bem sabemos. O conceito de “discriminação positiva” das
minorias é cada vez uma realidade incontestável nas democracias ocidentais
avançadas, pela percepção de que se tem de ir para além da democracia dos
números, que, sendo embora o embasamento formal desse regime político, não pode
contudo restringir o seu leque de virtudes.
Uma democracia simplesmente formal,
impossível de aperfeiçoamento, sem níveis nem mecanismos suficientemente
flexíveis de controlo, de fiscalização e de balanceamento, sem ‘actores’
democráticos suficientemente formados e activos, e limitada a uma leitura
numérica, e se os agentes democráticos se acomodarem a algo considerado acabado
e impassível de aperfeiçoamento, pode-se transformar paradoxalmente num sistema
autocráticos. Por todas estas razões enunciadas proponho que este assunto seja
escalpelizado em cima na mesa, no debate que se espera alargado, profundo e
participado.
(Continua)
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