ARRANCOU O DEBATE SOBRE REGIONALIZAÇÃO DE CABO
VERDE?
O Primeiro-Ministro de Cabo Verde reconheceu pela primeira vez, no passado
mês de Agosto, após tergiversar tempo demais, que um amplo debate sobre a
Regionalização é necessário, anunciando a realização para um futuro, embora
incerto, de um fórum alargado à diáspora e a abertura de um Livro Branco sobre
o tema.
Do MPD, apesar de se conhecer a posição oficial deste partido favorável à
Regionalização, expressa na pessoa do seu líder Carlos Veiga, o deputado Mário
Silva, em recente entrevista, tenta refrear o debate para que o processo possa
ser mais uma vez enviado para as calendas gregas, tão ancorado é o centralismo
e o imobilismo na visão de alguns Santiaguenses. A um dado passo da sua
entrevista, ele afirma: “Isto só para demonstrar que no estado em que as coisas
estão não estou muito preocupado porque a regionalização vai demorar décadas a
ser concre¬tizada. Aliás, já desafiei colegas meus, defensores acérrimos da
regionalização, a apresentarem projectos, mas ainda estou à espera…”. Esta é a
posição, mais ou menos encapotada, dos que defendem o centralismo ou pretendem
uma simples reforma administrativa ou mesmo um adiamento sine die da
Regionalização, como aliás aconteceu com o fiasco do Atelier sobre a
Regionalização de 2007. Mário Silva parece assim na retranca do seu partido
sobre esta matéria, a avaliar pelas intervenções públicas feitas pelo seu líder
e outros correligionários.
Com efeito, 10 anos, o tempo de duas legislaturas em Cabo Verde,
correspondem a uma eternidade em política, e o tempo encarregar-se-ia de matar
pura e simplesmente o debate. Dentro de 10 anos, Onésimo Silveira, um dos
protagonistas da luta pela Regionalização, o “enfant terrible” dos poderes da
Praia será octogenário e é muito natural que venha a ter menos vigor nos
combates; Mindelo e o resto de Cabo Verde, de certeza, estarão soçobrados numa
profunda e irreversível crise provocada pelo centralismo, que se dissemina
subtil e inexoravelmente pelo país dentro. Os centralizadores poderão
contemplar a acção de desgaste do tempo, recolhendo os dividendos da
desmoralização e da desmobilização em torno das ideias de Regionalização: S.
Vicente de joelhos, e Cabo Verde rendido por fim aos seus pés, exangue, sem
alma e sem rumo. Não se mostrando assim um grande defensor da Regionalização, para
não se dizer céptico, o deputado do MpD coloca mesmo assim questões pertinentes
para o debate e para o Livro Branco sobre a Regionalização: “quantas regiões
va¬mos ter em Cabo Verde? Qual é a delimitação de cada região? Que atribuições?
Que compe¬tências? Quantos órgãos? De onde vem o financiamento para o
funcionamento destes órgãos? Que estatuto para os titulares dos órgãos
regionais? A regionalização terá de im¬plicar uma grande reforma do Estado, mas
desse ponto de vista ainda nada foi discutido…”
Efectivamente, a Regionalização não será uma simples reforma mas sim um
complexo processo de transformação do país, que deve ser encarado com todo o
rigor e seriedade, pois em muitos processos de transformação os principais
actores não se apercebem da dimensão dos acontecimentos e das suas implicações
no quadro das mudanças operadas. Luiz XVI, aquando da tomada de Bastilha em
Paris, em 1789, no fim na monarquia em França, tentando compreender os
acontecimentos de Paris, perguntou ao seu mordomo: “S'agit-il d'une révolte?” Recebeu um
balde de água fria inesperado : “Non Sire, ce n'est pas une révolte, c'est une
révolution”. A França estava prenhe para uma das maiores transformações que abalariam as
fundações políticas e sociais da Europa e do Mundo. A ser tomada com seriedade,
a Regionalização poderá ser, não uma mera cosmética administrativa, para
aparentemente mudar algumas coisas e deixar o essencial do sistema centralista
burocrático intacto, como muitos pretendem, mas sim uma nova oportunidade para
o país, uma nova partida, e uma das mais importantes reformas políticas e
administrativas desde a Independência, libertando energias refreadas pelo
centralismo político e económico vigente no país.
A Regionalização deverá ser política, administrativa, financeira,
económica, etc, englobando todos os sectores da vida do país. Só se pode
responder às questões postas pelo deputado Mário Silva com uma profunda reforma
do funcionamento do Estado: “Qual é a delimitação de cada região? Que
atribuições? Que compe¬tências? Quantos órgãos? De onde vem o financiamento
para o funcionamento destes órgãos? Que estatuto para os titulares dos órgãos
regionais? A regionalização terá de im¬plicar uma grande reforma do Estado.” Ajustamentos
e correcções necessárias à organização do Estado de Cabo Verde, e condizentes
com a realidade arquipelágica e regional do país, serão indispensáveis. Será necessário
repensar profundamente o funcionamento e o papel do Estado nesta nova
realidade, o que implicará, de facto, uma profunda reforma constitucional. Com
a Regionalização, grande parte do aparelho do Estado terá que ser transferido
para as Regiões, aquele ficando confinado aos Macro-Sectores do país e às
principais funções inerentes à Soberania: Diplomacia, Defesa, Planificação
Financeira Macroeconónica, etc. Serão as Regiões detentoras do
grosso das competências outrora polarizadas no Estado Central, limitando-se
assim a intromissão na vida dos cidadãos da rede tentacular, toda poderosa, de
um estado burocratizado e até hoje fortemente partidarizado. Como os
franceses dizem “Il y aura du pain sur la planche”, ou seja, para além da
necessária reforma do Estado, será preciso reformular o seu papel no quadro da
nova realidade, a Regionalização. Modelos de Regionalização bem rodados já
existem em várias partes do Mundo e não adianta aqui pretender inventar a roda.
O Livro Branco sobre a Regionalização permitirá, sim, recolher contributos a
partir de estudos e pesquisas efectuados em diferentes realidades para depois,
mercê de reflexões e debates, adaptá-los à realidade do país, de forma a
construir o modelo de Regionalização que reflicta as nossas especificidades
geográficas, económicas e sociais.
Neste aspecto, como já tinha sublinhado noutros artigos, a Regionalização
Alemã pode ser um exemplo a seguir, sobretudo tratando-se de um país com quem
Cabo Verde tem boas relações, embora os modelos das Autonomias Espanholas ou da
Regionalização Francesa mereçam uma atenção muito particular. Com este modelo,
o Estado de Cabo Verde transitaria de um velho Estado napoleónico, jacobino,
centralista, para um Estado democrático e descentralizado, compatível com os
grandes desafios da modernidade e do Sec. XXI. A Alemanha é uma Federação onde
o poder político e administrativo está descentralizado através de uma ampla
rede de instituições de carácter estadual, regional e local. Uma organização e
uma articulação entre o Estado Central (Bund), as 16 Regiões (Länder) e as
autarquias (Gemeinde), cada um com as suas assembleias eleitas. Segundo
Carneiro e Dill, os Länders constituem a Cintura da Federação Alemã: ao
funcionarem como “autarquias” estaduais e, simultaneamente, ao realizarem
tarefas públicas que ultrapassam as fronteiras dos municípios, sob a delegação
dos mesmos, o Länders exercem, assim, uma “dupla função” muito importante.
Trata-se de facto (e de direito) de uma “articulação” robusta entre as esferas
de poder local e estadual. Os poderes dos Länders são importantes, podendo até
celebrar tratados com Estados terceiros, desde que disponham de competência exclusiva
para o efeito e do acordo do Governo Federal. Se o tratado tiver consequências
para a legislação do Länder em causa, a transposição do tratado para o direito
interno é feita através da sua aprovação pelo parlamento desse Länder, em
conformidade com a respectiva Constituição. Além disso, os Länders podem
celebrar tratados nos domínios em quais os respectivos governos estejam
habilitados a adoptar diplomas de carácter regulamentar. Este aspecto é muito
importante no caso de Cabo Verde, permitindo que as Ilhas Regiões tenham um
dinamismo a nível internacional e na Diáspora. Segundo Tomio e Ortolan, o
sistema de repartição de competências alemão inovou ao criar e privilegiar
novas formas de cooperação legislativas e administrativas, entre a União e os Estados.
Já o constitucionalista espanhol Enoch Rovira destaca alguns institutos
introduzidos na Lei Fundamental responsáveis pelo sucesso do federalismo de
cooperação alemão:
• a cláusula de presunção geral de competência em favor dos Länders para o
exercício dos poderes estatais e funções públicas ;
• na distribuição das competências legislativas, a preponderância de formas
de concorrência legislativa entre Bund e Länder (como a legislação de marco e a
legislação de princípios);
• na distribuição de competências administrativas, sobretudo, o modelo de
execução das leis federais pelos Länders, comportando fiscalização e direito de
emitir prescrições administrativas pelo Bund;
• as tarefas comuns (Gemeinschaftsaufgaben) que corresponderiam a formas
institucionalizadas de cooperação administrativa entre Bund e Länder.
Carneiro e Dill põem em evidência um princípio bastante importante na
arquitectura nacional alemã, sem o qual o modelo não poderia funcionar: o da
subsidiariedade e da autonomia na arquitectura nacional alemã, segundo o qual
as entidades estatais superiores (micro-Região, Estados e União) nunca devem
assumir tarefas que os Órgãos Menores, comparados ao Estado Central, possam
cumprir de maneira eficaz. Em outras palavras, os Órgãos Menores têm, em conjunto,
as prerrogativas de realizarem as políticas públicas de interesse local e
regional. Somente quando esgotadas as suas capacidades político-administrativas
as demais esferas de governo, ou seja, o Estados Central, podem e devem entrar
em cena, porém de forma subsidiária. No caso alemão, a autonomia municipal está
prevista e garantida com base no artigo XXVIII (II) da Lei Fundamental de 1949
na redacção de um princípio constitucional chamado de Kommunale
Selbstverwaltung, que quer dizer Autonomia Administrativa Municipal. Tal
autonomia pressupõe três dimensões: política, financeira e administrativa,
propriamente dita.
Para além desta estrutura, Carneiro e Dill ainda ressaltam o papel dos
Consórcios Inter-Länders e Inter-Municipais na Alemanha, actuando em vários
sectores para superação da ideia de rivalidade inter-regional ou intermunicipal
em favor da cooperação das partes envolvidas tendo em vista os benefícios
comuns (como referi num dos meus artigos em que denominava os Consórcios de
Clusters Regionais). A primeira razão para a existência dos consórcios
prende-se com motivos de ordem financeira, já que muitos municípios não
conseguem a autonomia de recursos desejável quando operam de forma isolada;
intimamente ligada à primeira, temos os imperativos práticos quando se trata de
realizar tarefas que podem ser mais eficientes quando feitas em colectivos
intermunicipais; um terceiro aspecto diz respeito à matriz energética e à
economia de recursos associada à expansão de oferta com melhor relação
custo-benefício para os cidadãos; finalmente, a cooperação regional se coloca
como meio para se conseguir ganhos de escala em qualquer política pública, no
mesmo espírito, no caso alemão, que inspira a integração europeia em nível
supra-nacional.
Como vemos, a Regionalização em Cabo Verde terá profundas implicações no
aparelho de Estado, exigindo uma profunda Revisão constitucional e a sua
inscrição numa Constituição actualizada, como um antídoto a eventuais derivas
ou derrapagens burocráticas e centralizadoras do Estado de Cabo Verde. Assim,
em vez do Livro Branco sobre o tema da Regionalização, a intelligentzia
política do país deveria pensar em abrir um Livro Branco sobre o Futuro de Cabo
Verde, para repensar o país, 35 anos após a Independência.
Na frente do combate para a Regionalização, pelas bandas de S. Vicente e do
Norte de Cabo Verde, aparece Onésimo Silveira cada vez mais como um
interlocutor credível na condução desse processo, o qual não será de todo
linear uma vez que os interesses do Estado centralizador estão hoje associados
ao poder económico e financeiro concentrado na Capital e numa única Ilha. Por
outro lado, os restantes intelectuais e a classe política mindelenses e
nortenha, tirando alguns casos pontuais (entrevista de Eva Caldeira Marques,
Augusto Neves e António Monteiro, onde exprimem convicções declaradamente pró
Regionalização, assim como Júlio César Alves, um corajoso mindelense que deu a
cara para o Movimento para a Regionalização), têm-se mantido numa situação de
baixo perfil ou ausentes do debate. Há um ditado em francês que diz ‘les
absents ont toujours torts’. Muito mais é legítimo esperar desta sociedade
mindelense cansada, desiludida, mergulhada numa apatia generalizada e com
níveis de participação cívica muito baixos, deixando fugir como areia entre os
dedos os valores de cidadania que outrora lhe eram caros. Por isso, é de saudar
o reaparecimento em cena de Onésimo Silveira, homem de sete vidas, com um vigor
anímico renovado, pronto a protagonizar esta justa causa de várias décadas.
Dando a cara desassombradamente, como é o seu estilo, ele é o porta-estandarte
das revindicações mindelenses, o cidadão que melhor se coloca como intérprete
dos nossos anseios e sentimentos. Não obstante os erros e as derivas políticas
de que é acusado, é justo reconhecer o estofo intelectual, cultural e
científico deste homem político de dimensão internacional, que muitas vezes
parece pregando num deserto.
Além disso, os mindelenses sabem que podem contar com a Diáspora, que
soube, em momento próprio, lançar em 2011 o apelo através do “Manifesto para um
S. Vicente Melhor”, e o “Movimento para a Regionalização de Cabo-Verde”, cujo
núcleo duro da diáspora foi constituído por mim, Adriano Lima, Arsénio de Pina,
Valdemar Pereira, Luiz Silva, o falecido Zizim Figueira, Joaquim de Almeida
(Morgadinho), Veladimir Cruz, tendo-se juntado a nós recentemente Vladimir
Koenig. Vários artigos sobre a Regionalização e a Descentralização foram
publicados pelo grupo, sendo de destacar o papel crucial no debate jogado por
Adriano Lima e Arsénio de Pina. Para além disso, conseguiu-se disseminar o
debate através de uma enorme rede de relações e de amizades em Cabo Verde e na
diáspora (sem a internet tal não seria possível), assim como através dos
contactos de elementos signatários das diferentes petições que o Movimento
promoveu.
Voltando a Onésimo Silveira, no seu último artigo, aflora de maneira
corajosa o que será provavelmente nos próximos anos um tema quente ao lado da
Regionalização: O debate sobre o crioulo. Sabendo da necessidade de adopção de
medidas imediatas para travar a queda de S. Vicente, que só podem ser
efectuadas no âmbito de uma larga Autonomia Política Económica e
Administrativa, e estando Onésimo Silveira em condições de participar ou
dinamizar uma larga frente nacional e apartidária para exigir a abertura
imediata do processo de Regionalização, o momento é de acção para se desencadear
iniciativas urgentes tendo em vista a sua calendarização, nas suas múltiplas
etapas até à sua concretização.
JOSÉ FORTES LOPES
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